JEREMIAS MACÁRIO - COLUNISTA VIP:

OS MOVIMENTOS REVOLUCIONÁRIOS DE

68 QUE SACUDIRAM O PLANETA -50 ANOS

Jeremias Macário

 Como na erupção de um vulcão adormecido por muitos anos, a década de 60 e o ano de 68, os mais radicais do século XX, foram fascinantes e representaram o início da contracultura com a quebra dos velhos costumes e a negação dos valores conservadores das ideias opressoras contra as mulheres, negros e outras minorias subjugadas.

  Foi a década da juventude rebelada, das contestações, da liberdade de expressão, do “faça o que tu queres” que culminaram numa avalanche de protestos em 68 contra a guerra no Vietnã, contra o comunismo stalinista, o capitalismo e contra as humilhações sofridas pelos negros nos Estados Unidos. Cinquenta anos depois todos se envelheceram.

  A princípio, jovens e operários se rebelaram contra normas rígidas no trabalho e nas universidades, e contra as ditaduras nas Américas e no mundo, principalmente no Brasil a partir do AI-5 que sentenciou e assassinou o “É Proibido Proibir” de Maio de 68 em Parias, na França.

   Foi a década em que a juventude tomou as ruas e atraiu velhos e trabalhadores para a causa da liberdade, para criticar e denunciar as atrocidades do comunismo e do capitalismo. Sem lideranças e sem comando, todos colocaram pra fora o que estava engasgado nas gargantas.

   Foi a década dos Beatles, dos Rolling Stones, do pastor Martin Luther King, Bob Kennedy, dos Panteras Negras e das organizações subversivas onde todos, inclusive os mortos, marcaram um encontro em 68 para arrebentar com os grilhões e dizer não aos antigos conceitos.

  Para o escritor Zuenir Ventura, 68 foi o ano que não terminou. Para Daniel Cohn-Bendit, o Dany, líder estudantil de Paris, tudo acabou, mas diria, cá comigo, que foi o ano em que tudo começou. Aqueles doze meses ainda ecoam em nossas vidas, e muitas coisas devemos a este período.

O TERROR DAS DITADURAS E DA GUERRA

 “Em “O Eco das Ruas de 68”, da revista Veja, a reportagem fala das boas lembranças, das grandes obras (Caetano, Gil, Edu Lobo, Vandré) e feitos que resultaram daquele ano, mas também das tristes recordações do terror das ditaduras na América Latina e no Brasil, do horror da Guerra do Vietnã e do assassinato de Martin Luther King.

  Os jovens saíram contra o poder, fosse de direita ou de esquerda. No Brasil contra um regime de força que matou, em março, o estudante Edson Luis e provocou a passeata dos 100 mil. Outras marchas se sucederam. Na Checoslováquia (Primavera de Praga), em agosto, contra a tirania dos tanques soviéticos.

   Em Praga, o movimento começou em janeiro de 68 com a ascensão de Alexander Dubcek para o cargo de secretário geral do Partido Comunista e ganhou forma com o manifesto “Duas Mil Palavras”, do escritor Ludvik Vaculik (1926/2015) onde exaltava a liberdade. O sonho foi esmagado pelos tanques soviéticos que encaravam a liberdade como um veneno.

   Pelo livre pensar, os jovens foram às ruas em Berlim, Paris, México, Tóquio, Chicago, Venezuela e Rio de Janeiro, para repudiar as arbitrariedades, a intolerância racial, o machismo e as guerras. Se não derrubou as estruturas, 68 marcou o protagonismo da juventude com seus ideais de contestação.

  Naquele ano, a juventude com suas teses esquerdista (leninistas, maoístas e trotskistas) sonhou com uma revolução que ganharia a sociedade inteira, disse o historiador francês Serge  Berstein. A desobediência pacífica não era mais suficiente, e os rebelados tinham como profeta o filósofo alemão Herbert Marcuse (1898/1979). Era a luta do novo contra o velho.

 Essa briga por direitos civis nos Estados Unidos (lei de 64 e ampliada em 65/68), que proibiam a discriminação de raça, sexo e religião, ganhou contornos sangrentos com os Panteras Negras e os Black Lives Mater (vidas negras importam) na resistência armada contra a brutalidade policial. De forma mais moderada, lá estavam Luther King e Bob e Robert Kennedy pelo fim da guerra que só aconteceu em 1975.

 Contra a guerra no Vietnã, a onda geral começou em fevereiro numa universidade de Berlim após a “Ofensiva Tet”, a mais violenta do conflito entre o norte e o sul. Os ânimos se acirraram com o atentado contra o líder estudantil Rudi Dutschke que num de seus discursos deu vivas à revolução mundial, à sociedade e aos indivíduos livres que dela resultarão.

   Em Paris, especialmente, o maio de 68 não apresentava um programa político, ponto este questionado pelo filósofo Jean Paul Sartre (1905/1980) quando disse “de que adiantava quebrar tudo sem saber o que por no lugar”. Logo depois, Bendit respondeu que a força de maio era a espontaneidade incontrolável.

  Aquela juventude vinha de duas décadas de crescimento no mundo ocidental com maior acesso ao ensino superior. Só na França, o número de universitários havia saído de 100 mil para 600 mil, mas eles queriam muito mais, como reformas gerais no âmbito social. Era também a geração da contracultura buscando sentido para a vida.

 Nenhum governo foi derrubado, mas surgiu uma cultura jovem com padrões e contestações próprias. Foi aquela geração de hippies que construiu a era digital (Steve Jobs). Foi a geração que inaugurou um período de mudanças contínuas, e também desenhou a fantasia do poder.

NA PARIS DAS BARRICADAS

  A geração dos anos 60, comparou o historiador inglês Tony Judt, que esteve em Paris em 68, via o mundo como jovem. Naquele ano, tudo começou com as passeatas dos universitários com suas reivindicações próprias. Do outro lado, apareceram as forças policiais gerando os confrontos que resultaram numa crise de autoridade.

  Na verdade, o cenário teve início em janeiro quando o ministro da Juventude François Missoffe foi até a universidade de Nanterre para inaugurar uma piscina olímpica. Um jovem ruivo, O Dany le Rouge, de 22 anos, estudante de sociologia, pediu que ele acendesse um cigarro e disparou: Li seu dossiê de 600 páginas de inépcias. Vocês nem tocaram na questão sexual dos jovens. O ministro respondeu: Com a cabeça que você tem deve conhecer os problemas dessa ordem. Eu só posso lhe aconselhar um mergulho na piscina. Ai o Bendit emendou: Eis uma resposta digna das juventudes hitleristas.

  Em 22 de março os alunos tomaram o prédio da administração de Nanterre contra a prisão de um colega membro do Comitê contrário à guerra do Vietnã. Nas batalhas de maio, a ordem era ocupar o Quartier Latin. O presidente Charles De Gaulle e as autoridades ficaram sem saber como lidar com a revolta.

  Os alunos e professores também ocuparam a Escola de Belas Artes de Paris, para produzir centenas de cartazes que foram colados em muros e fachadas nas ruas. Muitos deles ganharam notoriedade internacional e sintetizavam os sentimentos de revolta, com críticas ao governo, ao capitalismo e à violência policial.

  A iniciativa dos estudantes ficou conhecida como “Atêlier Populaire”. Os slogans, com peso maior nas mensagens políticas, eram aprovados pelas assembleias. O primeiro publicado foi Usine, Université, Uniou e outros se seguiram, como Travailleurs français et immigrés unis e La Chienlit c´est lui – Ele é a bagunça – em referência ao presidente De Gaulle, que chamou os jovens de baderneiros.

 Nos muros foram surgindo outras formas de contestações do tipo “Il es Interdit D´Interdire” – a lei do 10 de maio. Quem cunhou o lema foi o ator, cantor e escritor Jean Gouyé. O slogan universalizou-se quando ainda estavam em vigor muitas ditaduras. Quatro meses depois canta Caetano Veloso “Proibido Proibir”, inspirado no tema. Outras inscrições do tipo “A Barricada Fecha a Rua, Porém Abre o Caminho”  ganharam o mundo.

  “Sejam solidários e não solitários”, “Mesmo se Deus Existisse, seria preciso suprimi-lo”, “A liberdade é o crime que encerra todos os crimes” “Viver sem horas mortas, fruir sem entraves”, “A economia está enferma, então é bom que morra logo” “A desordem sou eu” “Esqueçam de tudo que aprenderam, comecem a sonhar”. Ainda hoje muitas dessas frases que contaminaram àqueles tempos ainda são guardadas em nossa memória.

  Você não vai mais dizer o que eu devo fazer – era também uma resposta dos jovens aos poderosos – interpretou o psicanalista Jorge Forbes. Para Jacques Lacan (1901/1981), que chegou a se encontrar com o Dany no auge das barricadas, aquele que denuncia o tirano por meio do confronto, melhora a tirania. O Dany espirituoso disse esperar que os psicanalistas ajudassem eles a lançar paralelepípedos. Nunca saíram para fazer isso.

 Já os filósofos Sartre e Michel Foucault foram às passeatas. Dois anos depois Sartre revelou que não havia entendido o que os jovens queriam. Os contestadores cumpriram seu papel, mas não foram capazes de mudar a ordem em vigor naquele momento.

NO BRASIL DA DITADURA

  Em 68 as notícias corriam lentamente, e o vento da renovação demorou a chegar por aqui em nossas plagas. Mesmo assim, o 68 fervia com as marchas dos estudantes e as pichações bradavam “Abaixo a Ditadura”. As forças armadas apertavam o cerco e baixavam o pau. Prendiam e torturavam, impiedosamente.  

    Muitos começaram a partir para a luta armada com mortes, perseguições e torturas. Em outubro, mesmo proibidos de realizar eventos estudantis, os jovens programaram, em Ibiúna, São Paulo, o 30º Congresso Nacional dos Estudantes (UNE).  Antes de começar, tudo terminou com a prisão de mil jovens, dentre os quais José Dirceu e José Genuino, mas dali surgiu uma nova geração de políticos.

   No final do ano de 68 (13 de dezembro), a ditadura civil-militar escancarou de vez e mostrou suas garras afiadas através do AI-5, como assinalou o escritor Élio Gaspari, em a “Ditadura Escancarada”. Com aquilo tudo, a ideia dos jovens era derrubar o regime a partir de uma visão marxista. O AI-5 se encarregou de ordenar que Estava tudo Proibido.

    Com o fim do movimento, muitos migraram para a militância das organizações clandestinas. Dirceu e Genuíno foram presos e exilados. De volta, entraram na política e novamente foram presos pelas denúncias do Mensalão e da Operação Lava Jato do Petrolão. O historiador Daniel Aarão Reis chegou a comentar que pegar atalhos tem alto custo na política e na vida. O Brasil do Mensalão e da Lava Jato ainda carrega as marcas de 68.

OS COMEDIDOS E OS RADICAIS

   Her foi a peça musical mais revolucionária da história. De uma década radical, 68 foi a mais radical, mas tinham os mais comedidos. Em novembro de 68, pouco mais de um ano da morte de Che Guevara, na Bolívia, os Beatles lançava seu 10º Disco, o Álbum Branco. Em Revolution, Lenon e Paul McCartney se mostraram reticentes diante dos movimentos quando chegaram a se expressar que queriam um mundo novo, mas se você fala em destruição, não conte conosco.

  Nos Estados Unidos, os Panteras Negras agitavam nas ruas ao lado de paz e amor dos hippies. Na Inglaterra, da sonolenta Londres, os Rolling Stones estavam mais sintonizados com as barricadas dos estudantes do que o quarteto operário de Liverpool. O cineasta Pier Paolo Pasolini lançava Teorema – um ataque ao convencionalismo burguês – mas não simpatizava com os jovens.

Mesmo no campo das esquerdas, haviam radicalismos em diversas correntes. “Eros e Civilização”, de Marcuse, era aceito pela juventude mais extremista, mas seu companheiro Theodor Adorno (1903/69) caiu em desgraça porque estendeu a mão para amparar um policial.

  Do outro lado, no Brasil, por exemplo, despontava a radicalidade de Geraldo Vandré na letra de “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores”. Já na Tropicália, Gil e Caetano não eram bem vistos pela esquerda radical. Para a MPB, 68 foi o ano do Tropicalismo em “Tropicália ou Panis et Circensis”, o disco manifesto (maio) de Caetano, Gil, Gal, Rogério Duprat e os Mutantes.

  No III Festival Internacional da Canção, Caetano fez “Proibido Proibir”, música inspirada num dos slogans das barricadas de Paris. Foi rejeitado pelos estudantes e terminou fazendo um discurso furibundo. Ele comparou os jovens aos brucutus do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) que haviam agredido a peça “Roda Viva”, de Chico. O público não aceitou as guitarras dos Mutantes, nem a performance anarquista do cantor baiano.   

  Podemos aqui fazer um paralelo entre aquela plateia enfurecida e os tempos atuais. O apelo desesperado de “É Proibido Proibir” ainda se mantém atual diante das intolerâncias. Segundo observadores no assunto, o maior legado deixado por 68 foi a política que se espalhou para muitos recantos da vida comum entre homens e mulheres.

  Protagonizado por líderes políticos, poucos se engajaram no movimento das “Diretas Já” de 84. Em 90, os filhos dos rebeldes viviam acomodados, conforme apurou pesquisa feita por organismos políticos. O ardor só voltaria mesmo em 92 com os caras pintados (moças e rapazes anônimos) que foram às ruas para derrubar o presidente Fernando Collor.

 Em junho de 2013, com o pretexto de repudiar os aumentos nas tarifas de ônibus, o movimento logo descambou para protestos contra tudo que estava em vigor. O movimento teve como característica principal a ausência de lideranças específicas.

  Seguindo o lema “É Proibido Proibir”, com as redes sociais todos falam o que bem entendem, mas o maio de 68 negava o discurso do ódio e da intolerância. O 68 queria sim, quebrar as diferenças de sexo e raça, e valorizar a pluralidade de pensamento. Criticava o capitalismo e o comunismo. “Temos hoje a utilização das técnicas mais modernas no exercício das práticas mais antigas” – sentenciou o professor de filosofia da Universidade de Campinas, Roberto Romano.