BOTO TEM EM TODO CANTO
Nando da Costa
Lima
— E agora, Docarmo, o que eu vou falar pra sua avó que me confiou você?
Você vai ter que falar quem te embuchou, senão as coisas vão piorar pra você. Fala
o nome do safado. Foi Joaquinzão do acarajé? Neco da padaria?
— Posso falar não, madrinha. Nem que eu morra! Não conto pra ninguém.
— Ué, menina, quer dizer que você prefere sofrer sozinha só pra proteger
um sacana. Ele é casado?
— Eu já disse, madrinha. Da minha boca não sai um “a”.
— E pra seu pai, aquele ignorante, como é que você vai se arranjar? Ele vai
querer saber nem que seja de baixo de pau. Você conhece a ignorância de
Profírio mais que eu, foi até por isso que você veio morar comigo e Miguidônio.
Por falar nele, meu marido ta pra endoidar. Como é que ele vai explicar essa situação
pra seu pai, tão ignorante... Vai acabar acontecendo coisa ruim, ali é a tampa
e a panela da estupidez.
—Fale isso não, madrinha. Parece que a senhora ta querendo ver sangue.
— Me respeite, sua desqualificada. Você faz coisa errada e ainda tem coragem
de falar desaforo pra mim. Quando eu falei
que não ia dar nada que presta, é porque eu conheço os dois, e sei que na hora
que ficarem sabendo quem foi o responsável por sua perdição. Se for solteiro,
vai ter que casar na raça... Mas se for
casado, ta lascado.
— É por isso que eu jurei que não conto pra ninguém, nem se mãe fosse
viva eu contaria.
— Eu já vi que esse filho da puta deve ter te ameaçado. Isso só piora a
situação dele, nem precisa ser advinhona pra saber que é homem casado...
— A senhora é muito boa comigo, mas está me julgando sem provas. Se eu
contar a verdade pra senhora, vai contar pro resto da parentada? Vai deixar eu ir
embora pra Sompaulo antes de pai chegar?
—Ué, por que resolveucontarassim de uma hora praoutra?
— É que a senhora é uma mulher letrada e vai entender logo.
—Fugir por que? Se você vai me contar tudo, eu posso resolver o resto.
Quem vai pagar é o peste que conseguiu tirar sua caçola de botão nos lados.
Desembucha, eu já to pra morrer de curiosidade. Quem foi o filho da égua que te
passou pra trás? Tá pensando que aqui não tem lei? Deixa Miguidônio ficar sabendo!
—Tá bom, madrinha, eu vou abrir o jogo. A senhora como professora vai entender
e contar pra estas almas sebosas que vão me crucificar na língua.
— Ô, Docarmo. Cê ta querendo me enrolar? Parece até que ainda táimaginando
uma história pra poder contar.
— A senhora sabe que eu detesto mentira. Posso ser qualquer coisa, menos
mentirosa.
— Então desembucha, eu já to ficando nervosa. Traz logo minha pomada pra
morroida... E conta tudo pra sua madrinha.
— A senhora então senta que eu vou falar de vez.
—Fala logo, trem ruim.
—Foi o “Boto” que me seduziu, madrinha.
— Mas Docarmo, em pleno século XX você quer que eu acredite e ainda convença
o resto da família que quem lhe emprenhou foi o boto. Parece até que não sabe
que o boto é um peixe que só tem lá pros lados da Amazônia. Se fosse o tarado
da Normal lá de Conquista, eu até podia fingir que acreditei.
— Eu sei, madrinha...
— E onde é que esse boto foi achar água pra viver aqui nesse caatingão,
tem mais de um ano que não chove. Toma vergonha na cara, menina. Me conta a
verdade ou eu vou apelar pra palmatória. Cê sabe que nem meu marido escapa dela.
—Tá bom, madrinha. Eu queria resolver as coisas de um jeito mais fácil,
a senhora sabida do jeito que é ia convencer todo mundo que foi o boto. Erá só inventar
que aqui na caatinga, quando secam as lagoas e os riachos, o boto se transforma
em gente e só desvira quando vê um açude sangrando. Mas como a senhora quer a
verdade, lá vai: madrinha, quem me embuchou foi o padrinho Miguidônio, seu marido.
Até a ideia de dizer que foi o boto foi dele, disse que a senhora acreditava em
tudo.
— É melhor você tirar o nome de Miguidônio dessa enrola, sua desalmada.
Eu pensei direito e vi que foi o boto. Deve ter sido naquele dia que eu e
Miguidônio lhe levamos pra conhecer o aguão de Conquista. Eu lembro que CE já voltou
de lá com a cabeça na lua. Pode deixar que assim que eu te despachar pra Sompaulo,
conto pro resto da família... Boto filho da puta, esse eu faço questão de
castigar
Dona Salustiana tava se queimando por dentro.
Sabia que o culpado era o sacana do marido. Fez aquilo e ainda mandou a
afilhada vir com história de boto... Ele tava se vingando do tempo em que ela
era a mulher mais bonita da cidade. Ele sabe que naquele tempo era só chegar um
dotô novo na cidade que ela era a primeira a se consultar. Só parou quando o
último cobrou a consulta e falou que não precisava voltar. Aí que ela viu que o
tempo gosta de aprontar. Miguidônio sabia de tudo, mas era frio igual uma
barata. Também, com o tanto de dinheiro que o pai de Salustiana tinha. Sem
falar da valentia... Não foi uma nem duas vezes em que Miguidônio teve que
ficar calado e vermelho igual a um peru. Era só o sogro falar que a filha dele
ficava viúva, mas não separava. E era mesmo, tinha duas cunhadas viúvas e
ninguém nunca falava dos finados maridos.
E foi depois de muito matutar é que dona
Salustiana viu que era melhor colocar a culpa no boto. Criou o menino como se
fosse seu neto, a afilhada nem precisou viajar... Só Miguidônio que se lascou:
depois daquilo dona Salustiana, além de não permitir que ele entrasse no
casarão e só andasse de cueca, mandou fazer uma lagoa murada no fundo da sede e
seu Miguidônio era obrigado e ficar dentro o dia quase todo. A mulher mandou
ele escolher: quer virar defunto ou quer virar boto até o fim dos seus dias?
Miguidônio aceitou a 2ª opção, mas não durou muito tempo. Os jagunços que ficavam
tomando conta não deixavam ele ficar mais de duas horas fora d’água. “Ordem de
madrinha Salustiana”. Sem contar o terço
das seis horas que ela rezava todo dia pra ele tomar vergonha e virar gente.
Não era nem um terço que ela rezava, era um rosario. E nessas horas, lá na
“Lagoa do Boto”, ele era obrigado a ficar ajoelhado em cima dum rochedo até
acabar a reza...
Morreu tuberculoso, mas antes de morrer, devido
aos maus tratos, ficou “aluado”, ele próprio achava que era oboto. No dia de
sua morte,dona Salustiana, além de deixar correr uma lágrima (de raiva), rezou pra
mais de dez “ruzaro” pro boto caatingueiro ir parar no meio do inferno. Ficou
tão desgostosa com essa história que acabou morrendo. E até hoje, todo mundo
que passa em frente ao velho casarão, vai logo falando: “Aqui era a casa da
viúva do boto”. E dona Salustiana morreu pensando que ninguém sabia quem era o
boto que abusou de sua afilhada.
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