O POVO DE BOQUIRA ENCURRALADO POR UMA MINA
JEREMIAS MACÁRIO
Com base num fato real
de uma matéria jornalística realizada no auge pesado da ditadura civil-militar
de 1974 pelo jornal “Estado de São Paulo”, proibida de ser divulgada, o assunto virou
livro “Boquira”, numa reportagem romanceada a partir da pena ligeira e
denunciativa do amigo-companheiro jornalista Carlos Navarro Filho, que na época
chefiava a Sucursal do periódico, em Salvador.
O relato é a fiel voz de desabafo de um povo
do interior do sertão baiano que sofreu todo tipo de opressão de uma companhia
multinacional de mineração e que dava toda cobertura ao regime militar em troca
de benesses dos governos dos generais Médici e Geisel. A empresa tinha suas
influências políticas até em Vitória da Conquista onde Renato Rebouças possuía
participações em muitas decisões.
Naquele período já era repórter de economia
do jornal “A Tarde” e conheci o dinâmico, competente e irrequieto colega
Navarro em algumas andanças de coberturas, inclusive feitas em outros estados.
Em meu livro “Uma Conquista Cassada” faço algumas referências ao caso “Boquira”
e sua prestação de serviços à ditadura na captura do capitão Carlos Lamarca.
A obra começa com um
comentário fidedigno do repórter Biaggio Talento sobre o ambiente redacional
barulhento, insalubre e “fumacê” dos jornais daquele tempo, e as dificuldades
para se passar um texto do interior. Sou como meu amigo Carlos Gonzalez da
mesma geração das máquinas de escrever, do teletipo e do aparelho de telefoto
que enviava as imagens reveladas num laboratório para filmes.
Para matar as saudades, concordo com Paolo
Marconi, no prefácio, quando disse que “fomos felizes e não sabíamos”. Lembra
ele do respeitado Jornal do Brasil e os tradicionais Estado de São Paulo, Folha
de São Paulo e o Globo, bem como do famigerado Ato Institucional no 5. As
críticas não podiam ser nem construtivas, mas elogiosas, como retrucou o
marechal Arthur da Costa e Silva para os editores do JB.
Para Marconi, o livro é produto de uma
desforra de quem viu seu jornal não publicar uma grande reportagem sobre
Boquira/Cobrac – Companhia Brasileira de Chumbo, subsidiária da francesa
Penãrroya Oxide S.A. Foi, na verdade, uma censura interna. “O livro é de
denúncia e ainda atual por mais estranho que possa parecer”. Depois de
paralisar a extração em 1992 em Boquira e fechar a fábrica de lingotes de chumbo
em Santo Amaro, a Cobrac deixou um dos maiores passivos ambientais da história
da mineração do país. A Samarco, em
Minas Gerais, talvez tenha superado em termos de danos.
Em redor da mina e margeando o município de
Boquira, Marconi calcula que existam mais de seis milhões de toneladas de
resíduos, sem qualquer contenção. Em Santo Amaro estão hoje 490 mil toneladas
de material contaminado, com metais pesados. Os órgãos de controle ambiental
tentam, desde 1993, condenar a Penãrroya. A primeira sentença condenatória foi
proferida em 2014. Mesmo assim, em janeiro de 2016 houve recurso da ré.
O PADRE AVARENTO
Na narração de Navarro, em sua história
“Boquira”, que tanto mal fez ao povo do povoado de poucas casas, tudo começou no
ano de 1954 com o padre Nazário, um descontente com sua situação de pobreza,
saindo de Oliveira dos Brejinhos com destino à fazenda Pajeú, em Boquira, para
dar a extrema-unção à idosa Neusina de Filó.
Ele descreve o cenário
de calor infernal do sertão. Padre Nazário é um avarento e passa pelo Morro do
Pelado onde se esbarra com, seu guia Codó, com pepitas gigantes. Imagina que as
pedras são ouro puro e não esquece do que viu na terra de pessoas ingênuas e
ignorantes.
Na volta, ele recolhe amostras das pedras
brilhantes que só serviam para fazer cercas de mureta para não deixar animal
escapar. Aquela extrema-unção um dia veio a mudar a vida de toda aquela gente
de Boquira. Dali em diante o estado de espírito do padre se renovara e atendia
a todos com satisfação em Macaúbas e vizinhança. Aguardava ansioso a chegada do
seu amigo farmacêutico Agenor, para levar as pedras para exame em Salvador.
Tudo calculado na sua
mente traiçoeira. Três semanas depois o amigo retornou e o resultado dava alto
teor de chumbo, mas as pedras careciam de exames mais precisos a serem feitos
em São Paulo. O padre malandro continuava a celebrar suas missas em Macaúbas,
mas sonhava ficar rico. Passou a namorar a filha do Agenor que dava uma de
médico charlatão.
Em 1955, os dois
começaram a tirar minério de Boquira no lombo de burro. Tempos depois Nazário tornou-se
pequeno sócio da grande empresa e ficou rico em 1965. Passou a explorar outras
áreas enganando os tabaréus e repassando o domínio por milhões à multinacional.
Certo dia reapareceu em Boquira num jipe sem falar com ninguém e foi direto
para o Morro do Pelado onde encheu o carro com grandes pedras, para exames no
sul. Deu fraco, mas não desistiu. Voltou a pegar mais pedras e dessa vez deu
galena viva, puro chumbo.
A partir daí, passou a frequentar mais o
povoado, agradar o povo e a celebrar missa todos os domingos. Foi aí que armou
a trama. No sermão dizia que precisava de assinaturas do povo para um
abaixo-assinado a ser levado ao governo, para construir uma igreja nova. Foi nessa
safadeza que passou a perna em todo mundo.
COMPROU TODO MUNDO
Com as assinaturas, procurou um advogado em
Salvador e requereu usucapião da área, incluindo serras vizinhas com todos os poderes
passados em nome dele pelos moradores. Foi vender ações no estrangeiro. O maior
comprador foi o doutor Linus, o pistoleiro da companhia. Qualquer advogado era
comprado pela empresa.
Como sempre acontece, a mineradora passou a
agradar o povo com besteiras, como caminhão de cervejas, jogos de futebol com
times do Rio de Janeiro, emprestar dinheiro e fazer churrascos com as piores
partes dos bois. O prefeito foi comprado e todos aqueles que apareciam em
defesa da população. Mesmo quem tinha documentos da terra perdia para o
advogado baiano Armando da Silveira, que antes foi contratado para defender os
proprietários e tornou-se parceiro da Mineração Boquira.
A reportagem registra vários depoimentos
queixosos dos que perderam tudo para o padre e o Agenor que, com seus capangas,
destruíram roças e pastagens. “Mandam a polícia, pegam os proprietários,
prendem e dão até bolo. Essa companhia só tem brutalidade. O padre tirou a
batina e não foi condenado a nada” – desabafou um entrevistado.
As matérias foram feitas pelo fotógrafo Bel e
o repórter de redação Dailton, que foram ameaçados e tiveram que deixar o local
às pressas, mas com uma boa colheita de dados. Em seu livro, Navarro pinta o
cenário daquela época ditatorial e dos jornalistas que acreditavam mudar o
mundo, denunciando crimes, prisões ilegais, corrupção, grilagens no oeste, tortura
e morte, mas eram amordaçados pela censura.
A mineradora tinha seus prepostos militares
que reprimiam qualquer manifestação, e vigiavam o Núcleo de Assistência Rural
de Boquira. Quando o negócio começou a apertar, os repórteres foram
aconselhados por Linus, o coronel reformado da PM, a deixar a cidade.
Além de Santo Amaro, parte da produção do
minério era transportado para o Paraná, e a companhia praticava contrabando de
ouro, prata e sonegação fiscal, conforme levantamento da equipe do jornal
“Estadão”. Com mão de ferro,a empresa mantinha o controle opressor da
população.
A reportagem incluiu levantamentos extraídos até
na França, país de origem da multinacional, que tinha um dos braços da
mineração em Salvador, Curitiba, São Paulo e Brasília. O regime militar
monitorava tudo e recebia seus dividendos da companhia, que comprou todos em
Boquira.
Mesmo assim, depois de tudo pronto nas
apurações, o “Estadão” ainda publicou a primeira matéria, mas o editor francês
do jornal impediu que as demais fossem divulgadas. Como o trabalho foi feito em
conjunto com o Diário de Notícias e o Jornal da Bahia, só os baianos fizeram as
denúncias.
Em sua obra romanceada, mas verdadeira, com
sua linguagem atrativa que prende o leitor do início ao fim, Navarro conta
todos detalhes das armações praticadas pela mineradora em Boquira, inclusive
assassinatos, linchamentos e torturas. Aponta os personagens das
arbitrariedades criminosas, e cita asvítimas dos carrascos dos moradores.
Descreve, por exemplo,
a história de João Mega, um dos donos do Morro do Pelado, que foi lesado pelo
padre Nazário. No seu desabafo, disse: “Mate um homem, mas não desmoralize ele
que pode virar um filho do cabrunco e cometer barbaridades, ou pode se amofinar
e morrer um tantinho a cada dia”... Para Navarro, João Mega sofria da dor de
dentro e morria de morte doída. Eram os pistoleiros matando, a água contaminada
e os adversários da mina acuados.
Na sua expressão de revolta, o autor de
“Boquira” chega a afirmar que a empresa controla os negócios, a saúde, a
polícia, os órgãos públicos e a igreja, exceção de Jesus Cristo, “porque aqui
ele nunca botou os pés”. A mina bota prefeito e tira prefeito. A CPI do
Congresso apontou vários crimes cometidos pela companhia (sonegação fiscal,
contrabando, mortes), mas não aconteceu nada.
Por fim, o jornalista Navarro faz um
histórico sobre as origens do povoado de Boquira e como seu povo simples sempre
foi ludibriado pelos mais fortes, culminando com a chegada da mineradora.
Destaca todo o aparato montado pelas forças armadas e pelo delegado Fleury na
região (Brotas de Macaúbas, Oliveira dos Brejinhos e Boquira), com todo apoio
logístico da mineradora, para capturar e matar Carlos Lamarca e seu companheiro
Zequinha. “Os gringos vindos dos quintos dos infernos cometeram barbaridades”-
protestou João Mega.