sábado, 13 de abril de 2019

NANDO DA COSTA LIMA - COLUNISTA VIP:

CAÇOLA É COM “C” CEDILHA
 Nando da Costa Lima
            Só descobriram porque Dão Cheiroso, que era apaixonado pela noiva, botou tudo a perder. Isto é: esculhambou com a vida do professor que já chegou ali com a intenção de montar um grupo de teatro. Tá certo que naquela boca de caatinga, falar era coisa rara! Talvez porque o ano foi de chuva, o pessoal tava até mais sociável, suportaram aquele prosa ruim explicando que era especialista em expressão facial, que estava ali à disposição do povo pra transmitir seus conhecimentos das artes cênicas e aproveitar e ensinar à mulherada a ler e escrever. 95% da população era analfabeta! Só aquele doido metido a professor pra salvar a situação preenchendo o tempo com alguma coisa útil. Teve que começar com o ABC. Foi nessa que Guilherme “Lorão” uniu o útil ao agradável: ele tinha saído da capital do Sudoeste esporreteado pelo cunhado que já tava cansado de sustentar aquele preguiçoso metido a artista. O cunhado jogou a mala de Guilhermão no meio da pracinha do Gil num horário de movimento, todo mundo viu. Agora não dava mais pra ele ficar naquele ambiente, tinha queimado o filme! A irmã ainda ajudou, deu um pouco de dinheiro pra ele comprar uma passagem pra roça, lá ele sossegava o facho e parava com aquela conversa de ator perseguido pelo sistema.Quando chegou no povoado, foi logo notado: era dia de feira... Mas mesmo que não fosse, todo mundo ia notar aquele vara-pau de 1,90 usando um terno branco bufado e um Vulcabras 46 lustrando. Foi logo apelidado de “Vara” pelos biriteiros e futuros colegas de copo do mestre das artes cênicas. O “Lorão” é porque ele já tava ficando grisalho e dum dia pro outro apareceu todo pintado de louro, até os do suvaco!
            Seis meses se passaram e Guilherme já tinha virado uma celebridade, a cidade tinha a maior estima pelo mestre, ele não ficava um dia sem ser convidado pra almoçar ou jantar na casa de uma das suas alunas, todas senhoras bem casadas. O fogão de Guilhermão tinha tempo que não via fogo, deu até teia de aranha. Mas tinha que ser assim, o homem era retado: além de alfabetizar, ainda dava aulas de teatro. Estava empenhado de corpo e alma na cultura regional, dava até pra ser Ministro da Educação. Sabia até falar português, isto sem contar a “treita de sete jegues”. Ele já tava mandando, dava opinião em tudo. Os homens saíam cedo para o campo, só tinha trabalhador rural... Capinar na caatinga não é pra qualquer um, bater enxada numa terra seca e cheia de pedra... Um dia parece uma eternidade. Mas enquanto os maridos metiam a enxada chão adentro, as senhoras ficavam em casa aprendendo a ler e representar. E é claro, cozinhando quitutes para o mestre. E aquele safado ainda tinha coragem de botar defeito nas comidas que ele não gostava. Quase toda casa tinha uma rede pro filho da puta do professor de teatro. 
            Como já foi dito, o problema começou por causa do ciúme doentio de Dão Cheiroso. Também, foi arranjar uma noiva com uma bunda que parecia uma escultura... É claro que tinha que morrer de ciúme. Ô bundão! Antes ela vivia aos chamegos com o noivo e dono do único boteco da terra. De repente, começou a botar defeito em tudo que Dão fazia. Ele ficou retado, não podia mais nem passar meleca no balcão ou cuspir no chão do boteco, tudo era “gafe” pra ela depois que o sacana do professor mudou pra lá. Um dia Dão encheu o rabo de pinga e esculhambou com a raça do filho duma égua do professor. Ofendeu até as senhoras que eram alunas do mestre Lorão. Sua noiva ainda tentou se defender falando que as 32 vezes que o “pró” foi na casa dos pais dela foi pra tirar alguma dúvida escolar (os pais dela já tinham morrido há mais de dez anos, só moravam ela e a avó caduca). Aí Dão ficou mais retado do que já estava e acabou de detonar o sacana do “artista” que, segundo ele, já tinha corrido a mão boba na maioria das mulheres que ele dava aula. E pra frisar mais a safadeza, citou o nome de dona Clemilda, casada com Climério Pato Roco, poeta e apaixonadíssimo pela esposa. Quando não estava capinando, tava escrevendo versos para a musa. Climério, que tava no buteco, perdeu a cabeça e quebrou o linguarudo na porrada. Subiu pra casa retado, levou um litro de pinga que secou ainda no caminho e já chegou na residência com a conversa armada. Sentou no sofá, chamou a mulher e perguntou educadamente, quase chorando... Era um homem apaixonado!
— Clemilda, eu só quero que você seja sincera comigo. Você sabe que eu sou poeta e jamais partiria pra ignorância. É que eu fiquei com uma pulga atrás da orelha depois da conversa de Dão Cheiroso, ele chumbou e abriu o bico. Esculhambou com a raça do professor. Disse que o mestre tá correndo a mão boba em todas as alunas. O povo tá esperando ele voltar de Conquista pra quebrar ele no pau, tá todo mundo retado! Aquele tarado merece. Segundo Cheiroso, a mulherada que aprendeu o ABC com ele, quando chegava no “X” de “Xexéu” e no “Z” de “Zebra”, o professor já tinha corrido a mão boba no corpo todo. E quando passava pra cartilha da Lili e ensinava a botar cedilha em “caçola”, é porque o negócio já estava adiantadíssimo. É por isso que eu tô com uma pulga atrás da orelha, você é a maior lindeza e é aluna daquele safado... Será?
— Ué, Climério. Cêtá me achando com cara de quê??? Cê acha que eu sou as putas da Rua da Capela? Me respeite! Tá igual menino, acreditando em fuxico de dono de buteco. Isso é porque a noiva dele é a aluna mais aplicada.
— Tá bom, Clemilda. Cê tem razão, eu vou parar com essa bestagem. Mas será que dá pra você soletrar “caçola” só uma vez? É pra me desencafifar de vez e parar com esse ciúme besta.
            E só depois que Clemilda soletrou “caçola” com “ss” é que ele foi ficando mais calmo, sossegou e dormiu o sono dos justos... Sabia que a mulher ainda não tinha aprendido a botar cedilha em “caçola” com aquele professor filho da puta. Dava tempo de evitar o pior, deixa aquele sacana chegar da capital. Antes de pegar no sono, planejou comprar uma garrafa de Jurubeba Leão do Norte. Tinha que mostrar pra Clemilda que ele ainda era um touro... Touro não! Outro bicho. Um leão, que não tem chifre.

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