Encosto
Nando da Costa Lima
Mulher
de poeta deve sofrer... Tem até quem ache que o SUS devia ter um serviço de
atendimento psicológico só para elas. Dona
Marizilda que o diga! Casada com o poeta Custódio Carente da Silva, ela não
perdia uma oportunidade para esculhambar com a “raça” dos poetas, e o marido
principalmente. Ela achava que o poeta ia tomar jeito depois da idade avançada,
78 anos não é qualquer coisa. Mas ele continuava agindo como se fosse jovem,
não podia ver uma moça bonita que fazia um verso. E ainda aparecia quem
admirava aquele lenga, quase sempre, voltado para o amor. Dona Marizilda perdeu
a cabeça quando encontrou no bolso do poeta uma poesia quilométrica dedicada a
uma afilhada deles, dessa vez ele extrapolou. A moça, além de ser cria da casa,
tinha idade pra ser neta daquele safado. Ela estava irredutível, não ia passar
o pouco que lhe restava da vida com um velho tarado que não respeitava nem a família.
A sorte dele é que a menina era maior de idade, senão a esposa já tinha dado
queixa na delegacia. Foi aí que chegou dona Elenilda e tentou acalmar a amiga,
as duas estavam na fila do posto de saúde:
- Calma, Marizilda. Seu marido é um
poeta premiado, tem até livro publicado!
- Poeta porra nenhuma, aquilo é um
encosto! Você tá falando assim porque não sabe nada do que eu passei nesses 54
anos junto deste traste que você chama de poeta. Tive que sustentar esse merda
a vida toda e você ainda tem coragem de me lembrar que ele é poeta.
- Mas amiga, ele deve ter ganhado
algum dinheiro com os livros que publicou. Se eu não me engano, foram mais de
dez, todos dedicados a você.
- Se vendeu, aplicou no sinucão ou
na cachaça. No meu fogão nunca passou um centavo daquele filho da puta.
- Calma, querida! Pra quê botar o
nome da mãe no meio da briga?
- Porque foi ela que pariu o merda
do meu marido e mais oito poetas! A velha só teve filho imprestável, todos
ficaram viúvos cedo. As coitadas das mulheres não aguentaram o tranco. Imagina
aí, Elenilda: uma casa com as contas todas vencidas, inclusive o aluguel. Aí
quando dá duas da madrugada chega um safado bêbado falando que ganhou mais um
concurso de poesia. Não tem mulher que aguente o baque! Ou endoida ou morre. Só
eu que sou osso duro de roer pra suportar. Mas agora, na velhice, ficar achando
versos e mais versos de amor justificando uma brochada que aquele traste deu
num motel com uma moça que tem idade pra ser neta dele. Chega de poeta!
- Bobagem... Você já suportou tanta
coisa e vai sair do jogo por causa de mais um caso irrelevante que pelo visto
nem se concretizou...
- Você viu o verso??? Eu até
decorei. Não é nem verso, é tipo um bilhete pedindo arrego: “Querida amada,
quando lembro que nós passamos uma noite juntos esperando meu amor fluir, o que
infelizmente não aconteceu e você maldosamente me chamou de ‘balão apagado’, eu
quase morri de vergonha! Como poeta choro e peço uma segunda chance” e blá,
blá, blá...
- Ué, amiga. É só um bilhete se
explicando. Você nem devia levar isso em conta.
- Me desculpe, mas por que você só
interfere em favor do meu marido? Por acaso você conhece a peça?
- Mais ou menos. Ele é amigo do meu
marido, e cá pra nós, pior que o meu marido tá pra nascer, não existe no mundo!
Crispiniano vale por dez, dá trabalho demais. Sem falar da prosa ruim...
- Ué, você também casou com um
poeta inédito? A moça foi taxativa: balão apagado.
- Bem pior, minha querida. Meu
marido é músico. Já pensou ter que suportar um baterista “invocado” e desempregado?
O homem vende tudo da casa, menos a porra da bateria. É o dia todo, às vezes
até à noite, batucando naquilo. É o meu calvário.
- Oxente! Eu tava me queixando da
vida logo pra você, sendo que o seu caso é bem pior que o meu. Baterista, além
de geralmente ser sistemático, é barulhento. Poeta não, tirando a cachaça e
arrumando um emprego... Um empreguinho bem leve!
- Pior é minha irmã, que se casou
com um ator que tem pra mais de cinquenta anos que fez uma ponta num filme. Seu
último trabalho foi no filme “O Tropeiro”, o velho até hoje fala disso! Nem sei
se foi concluído. Eu só sei que foi todo rodado aqui em Conquista e que Lulu
Barabadá trabalhou nele. Aparece nu montado num cavalo em pelo. Haja cú!
Artista passa por cada aperto...
- Elenilda, eu tô aqui morrendo de
raiva, querendo me divorciar, você até fome tá passando por causa daquele
abestalhado metido a baterista. E você ainda me vem falar de um filme do tempo
que a gente era criança... Tenha paciência!
- Ô, amiga. Eu só falei do filme
pra você relaxar, é que eu estou sem saber como te dar a notícia...
- Que notícia, mulher. Desembucha!
- É que aquela sua filha que mora
em “Sompaulo”, aquela que você falou que ia ficar solteirona, casou semana
passada. Hoje que eu fiquei sabendo. Pronto falei!
- Ué, e eu precisava ficar
lembrando de um filme pra relaxar por que? Você acabou de me dar uma boa
notícia. Casar uma filha aos 40 anos é coisa rara!
- Eu sei, Marizilda. É que o noivo
é ator, poeta e baterista de uma banda de garagem. O traste que se casou com
sua filha é meu enteado Simplício, lembra dele? Estão vindo passar a lua de mel
aqui.
- Aí lascou, Elenilda. Isso é
notícia que se dá pra uma mãe na fila do posto de saúde? Cruz credo! Sou sogra
de Simplício Marcha Lenta, quando ele morava aqui já tinha esse apelido... Isso
é carma! Nos “finalmente” da vida aparece outro poeta pra me pirraçar.
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