MILAGRES ACONTECEM...
Nando da Costa Lima
Deodato Grampão subiu a escadaria
da catedral de joelhos com uma vela de 7 dias acesa na mão esquerda. Grampão
não era um homem comum, era um remanescente dos jagunços... Um sujeito de
poucas palavras, e meio bruto... Uma cancela de ladeira abaixo! Acompanhando ele
ia a mulher, os filhos e uns camaradas. Na entrada da igreja se benzeu e mandou
um dos meninos da turma chamar o padre. Era só falar que era Deodato Grampão
pagando uma promessa que o vigário vinha logo, ele já sabia de quem se tratava.
A mulher quis dar uma de entendida e falou que naquela hora ele não achava
padre. Hora de almoço! Tava nervosa, tinha perdido a semana quase toda com os
preparativos dessa jornada religiosa. Deodato acalmou a patroa sutilmente:
“Cala a boca, porra!”. Depois, tornou a pedir pra um camarada ir buscar o
padre. O rapaz que foi chamar já voltou enfezado: “Ou o senhor manda esse
sacana calar a boca ou eu jogo ele pra trás, patrão”. Deodato interferiu:
“Respeite a igreja, Roduzino. Sacristão também é filho de Deus”. O sacristão,
que já estava de mau humor porque foi acordado logo depois do almoço, bradou:
- Que palhaçada é essa na porta da
igreja, vocês erraram o caminho. A Lapa fica pra outro lado! Meio dia é uma
hora que até vagabundo tá em casa.
Aí Deodato
deu ré de joelhos pra sair do salão da igreja por respeito, e falou pro
ajudante do padre:
- Sacristão filho de uma puta, eu
tô aqui pra falar com o reverendo, e não com o puxa saco oficial. Se promessa
não fosse coisa séria você ia ver, seu safado.
O
sacristão, atrevido que só ele mesmo, completou:
- Respeite a casa do Senhor. Tá
pensando que tá no Magassapo?
- Me respeite, seu corno. Eu sou lá
homem de Magassapo, tô acompanhado da patroa, seu merda. Sua sorte é que estou
ajoelhado e não posso levantar até ver o padre, senão quebra o encanto da
promessa! - E deu um “Piquete de Mané Guede” pro sacristão na frente de todo
mundo.
Se não
fosse a promessa, ele já tinha quebrado aquele atrevido na porrada! Deodato em
pé parecia um guarda-roupa de casal colonial. Só de um homem daquela largura
não meter a mão no sacristão já foi um milagre! Era daqueles branquelos
avermelhados que quando ia ficando retado avermelhava ainda mais. Ficava igual
um peru, até as verrugas ele tinha. Quando isso acontecia era um perigo, quem
conhecia nem encostava. Graças à promessa a ser paga, Deodato avermelhou, mas
continuou ajoelhado. A esposa ainda instigou: “Mete o murro nesse sacana”, e o
marido novamente contornou a situação: “Cala a boca, égua!”.
Ele
demorou muito tempo pra criar coragem pra atravessar a praça e subir a
escadaria da catedral de joelhos pra pagar uma dívida com a padroeira da Terra
do Frio. Não podia estragar tudo por causa de um filho da puta qualquer...
Tentou levar pra diplomacia:
- Fale com o vigário que é um
afilhado de Dotô Régis Pacheco.
O sacristão aproveitou a deixa e foi à forra,
queria desmoralizar o desbocado:
- Eu tô trabalhando com o padre há
vinte anos, se eu fosse contar os afilhados de Dotô Régis só nesse tempo, dava
pra encher uma cidade pequena. Uma vez o padre teve que colocar uma cadeira na
pia batismal, naquele dia o governador batizou uma cacetada de meninos, teve
até parada pro almoço!
Deodato,
mesmo estando pra explodir de raiva, tentou uma segunda vez com outro
argumento:
- Mas eu sou afilhado legítimo, do
tempo que o governador ainda era médico aqui em Conquista. Cê lembra que ele
ganhou até uma Baratinha (fordinho) pra atender os pacientes que moravam mais afastados?
Mas
não adiantou nada, o sacristão não estava disposto a colaborar e mais uma vez
retrucou:
- Se for contar os afilhados do
governador do tempo que ele era médico até hoje, meu Deus! Dá pra ir na Lapa e
voltar botando um afilhado por metro.
Deodato
já tava pra sentir mal de tanto raiva, ainda bem que os dois 38 ficaram
guardados, não seria ele que iria entrar numa igreja armado. Atitude que por
sinal já fazia parte de sua promessa!.. Outro milagre, se ele tivesse armado
aquele merda já tinha virado defunto. Se benzeu pra afastar o mau pensamento,
respirou fundo, contou até 10 e fez a última tentativa já com a voz de locutor
de futebol na iminência de um gol:
- Eu dou dois minutos pra esse
vigário aparecer, fala que quem tá aqui é Deodato Grampão, vulgo Dedo Mole,
aquele que matou um lobisomem na Guarita de Minas. Passei a papo amarelo no
bicho duma distância que só eu pra acertar, mirei no “oi” pra não perder o
couro! O couro do lobisomem foi curtido e vendido aqui em Conquista, o padre
sabe... Não esquece de dizer que eu tô pensando seriamente em anular essa
promessa de não andar armado, tá ficando muito difícil de cumprir o prometido.
Foi
falar no lobisomem, o padre se lembrou de quem se tratava e apareceu de vez,
nem precisaram chamar. Já chegou com o coroinha jogando água benta, pra tudo
que é lado, principalmente em Deodato e na família! E passou um carão no
sacristão na vista de todo mundo:
- Isso é maneira de tratar um
afilhado de Doutor Régis Pacheco? Peça desculpas e se retire do recinto.
O sacristão amofinou e desceu a
escadaria parecendo que tava doente... Também, foi mexer com o afilhado do
governador... Tem dia que a gente acorda com o pé esquerdo. Logo um dos
afilhados mais famosos, o homem matou o lobisomem da Guarita de Minas, famoso
em dois estados! O padre não ia perdoar ele nunca. Devia ter maneirado com Seu
Deodato... O sacristão Perventino desceu a rua e foi parar na Praça do Jenipapo,
aproveitou e catou uma fieira de piabas, foi no dia que
teve a famosa Chuva de Peixe, só choveu na Praça do Jenipapo. Milagre! Mentira
porra nenhuma! Se Vó Mucinha ainda estivesse aqui, poderia tampar a boca desse
bando de herege. Foi peixe que teve que salgar...
P.S. O couro do lobisomem da
Guarita de Minas faz parte do acervo de Flávio Brito, Itororó - Bahia.