FALE PRO POETA QUE EU MORRI
Nando da Costa Lima
Cremildo
Silva do Espírito Santo. Como o grande poeta, fazia
questão de frisar que seu nome era um verso alexandrino. Mas do poeta ele só
tinha esses pequenos hábitos, gostar de poesia e falar que o nome era um dodecassílabo...
Porque a poesia de Cremildo lembrava discurso de político em velório. Dava
vontade de sair correndo! A vida do poeta sempre foi cheia de surpresas... Nem
ele sabia que tinha o “dom”! Só descobriu depois que conseguiu parar de beber
por uma semana e, na depressão da abstinência, pegou o caderno da irmã mais
nova, daqueles de doze matérias, e encheu de versos em apenas dois dias de
insônia... Mostrou primeiro pra esposa, que não entendeu nada, mas só por ele
estar tentando parar com aquela cachaça horrorosa, deu a maior força. Tem
mulher que merece virar santa, mas as dos poetas já nascem santas! O
ex-biriteiro se animou e correu pra casa do seu padrinho com o manuscrito
debaixo do braço. Já chegou dando a notícia: “Parei de beber, vou virar escritor”,
e apresentou o manuscrito pro pobre do velho, que caiu na besteira de ler e
corrigir alguns erros de concordância. Desse dia em diante ele se tornou o
revisor e patrocinador oficial da obra do poeta e afilhado. Depois do terceiro
livro, Seu Gerôncio já não aguentava mais. O afilhado parou de beber e
endoidou. Tava lançando uma média de 12 livros por ano, era a inspiração
encarnada! E era o padrinho quem tinha que revisar e patrocinar todos, ou seja,
tinha que ler aquela porra querendo ou não. O casal de idosos já não estava
suportando aquela tortura quase que diária. O velho já estava sendo tratado com
antidepressivos.
Numa
bela tarde, o poeta chegou na casa do padrinho com o manuscrito do vigésimo
volume da série: “Sonetos Atômicos”. Seu Gerôncio, na hora que escutou a voz do
afilhado, fechou os olhos e começou a roncar como se estivesse em altos sonos,
mesmo estando sentado num tamborete. Cremildo puxou uma cadeira, se sentou e
falou pra madrinha que ia esperar o padrinho acordar... Dona Eunice, também já
cansada da cara do afilhado, ficou nervosa. Até ele notou! Educadamente,
Cremildo perguntou o motivo daquela tremedeira. A velha se retou e abriu o
jogo: “O culpado ‘deu’ estar assim é você, com esses livros que ninguém lê.
Gerôncio já tá tomando remédio tarja preta por sua causa, e só você não nota. É
tanto livro que até a comitiva de poetas de Poções, que sempre defendeu a
classe dos escritores, parou de vir pros lançamentos. Quem é que aguenta? Um
livro de quase 500 páginas todo mês... Cremildo, Cremildo, toma uma tenência na
vida, para de encher o saco dos outros com essas porcarias que ninguém lê...
Agora que você tá sem beber, podia até arrumar um emprego pra ocupar o tempo,
você não vai precisar pegar peso”.
O
poeta ficou ressentido.Pegou o manuscrito e voltou pra casa. Resolveu reler a
obra, estava inseguro. Será que sua poesia era tão enfadonha? No quarto
capítulo do primeiro volume ele já pensou em tomar uma, quando começou a ler o
quinto volume já estava de volta ao copo! Pra suportar aquela merda, só
bebendo. Daí por diante, não parou mais de beber. Os padrinhos deram até uma
festa para ele. Ficaram alegres por terem se livrado daquele doido recitando
dentro das panelas e rodando o fogão quase todo dia. Sem falar do desodorante
vencido! E Cremildo jogou toda a culpa daquela cachaça prosa ruim pra cima dos
“ignorantes” que não conseguiram entender seus sonetos... E tome cachaça pra
dentro! O dono do buteco falou que ele tinha voltado ao copo com tanta
dedicação porque foi reler a própria obra e não entendeu porra nenhuma. Mas é
mentira, ele só não entendeu os 13 primeiros volumes.
Foi
depois de muito tempo que um intelectual da noite relacionou um verso dele com
o minimalismo. Daí em diante toda aquela chatice, que quase endoida um casal de
idosos e botou uma comitiva de poetas pra sumir, tornou-se minimalistamente
chic! O homem até recuperou a autoestima e voltou a escrever. Aí lascou! Além
de cachaceiro inveterado, poeta! Os padrinhos, na hora que souberam que ele
tinha voltado a escrever “com todo o gás”, se mudaram pra São Paulo e nem
deixaram o endereço. Viajaram às pressas, o rapaz que ficou tomando conta da
casa, já com a placa de “Vende-se”, ainda perguntou pra Seu Gerôncio o que era
pra falar pro afilhado quando ele aparecesse. O velho respondeu apressadamente,
já entrando no ônibus: “Fale pro poeta que eu morri”.
P.S. Brinco com os poetas porque faço parte da
comitiva.
Nando da Costa Lima
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