AS TRAPALHADAS E A BEBEDEIRA
Jeremias Macário
Os erros também se sucediam do lado bolchevique. Como sinal para
invasão do palácio, os oficiais combinaram levantar uma lanterna vermelha no
topo do mastro da fortaleza “Pedro e Paulo”, só que na confusão esqueceram de
providenciá-la. Um comissário foi obrigado a sair em busca do objeto.
Conseguiram uma lanterna, mas a cor era diferente. O pior é que o cara se
perdeu na escuridão e caiu num brejo. A lanterna não foi erguida, nem o sinal
foi dado. Por volta das 19 horas, o comando deu um ultimato, mas nada aconteceu.
Depois de muitas lambanças e desencontros, finalmente, por volta
das 22 horas o cruzador Aurora deu um tiro de festim como sinal para o assalto.
O Batalhão de Choque Feminino do Palácio entrou em pânico. Foi aí que os
comandantes bolcheviques conseguiram reunir uma força maior.
Carros blindados romperam as paredes de entrada com tiros de
metralhadora. Só então os Guardas Vermelhos caíram na real de que o Palácio
encontrava-se sem defesa. As portas não estavam trancadas. Mesmo
desorganizados, lá pela madrugada do dia 26 de outubro penetraram em suas
instalações. Só depois de muita confusão, os ministros de Kerenski, reunidos
num salão onde Nicolau II sempre jantava com sua família até antes de 1905,
resolveram se render.
PILHAGEM E CENAS DE VANDALISMO
Conforme conta em seu livro o escritor Simon Sebag, na madrugada
(por volta das duas horas) o Comitê Militar declarou todos presos. A ordem foi
o sinal para o início da pilhagem geral, enquanto os lacaios do Palácio
tentavam conter os saqueadores. O filme de Eisenstein mostra muito bem as cenas
de vandalismo e de confusão. O comando do Comitê Militar Revolucionário perdeu
o controle, e mulheres do batalhão foram violentamente estupradas.
O mais cômico aconteceu com a adega de vinho de Nicolau II, que
tinha garrafas do tempo de Catarina, a Grande, e enorme estoque de 1847.
Ninguém resistiu, todos ficaram embriagados. Chamaram os guardas dos comitês
Regionais para controlar a situação, mas eles também entraram na farra. Carros
blindados foram ao local para retirar a multidão e também os soldados caíram na
orgia desmedida. Ao anoitecer do dia 26 o Palácio virou um bacanal.
O chefe do CMR, Antónov-Ovséiienko, chamou a Brigada de Incêndio
de Petrogrado para inundar a adega de água, mas os bombeiros também se
embriagaram, conforme relata Simon Sebag. Para conter a loucura, resolveram,
então, quebrar as garrafas na Praça do Palácio. “A multidão bebia o vinho da
sarjeta”. Em pouco tempo, toda cidade estava de porre.
Quando Kámenev anunciou que o Palácio de Inverno, o Smólni,
finalmente caíra, Lênin tirou seu disfarce e apareceu como novo líder da
Rússia. Stálin saiu da multidão e de tão eufórico ficou vários dias sem dormir,
redigindo o “Apelo ao Povo”. Como narra John Reed em seu livro, a cidade estava
tranquila.
Exausto e estendido ao lado de Trotski, numa pilha de jornais,
Lênin disse: “Sabe, passar tão depressa das perseguições e da vida clandestina
ao poder faz a cabeça da gente girar”. Era manhã do dia 27 e, à noite, o
Congresso teria que se reunir, para traçar os destinos da nação. Por volta das
21 horas, o homem de cabeça grande, calvo, nariz arrebitado, líder mais pelo
intelecto, sem graça e humor, apareceu e foi recebido com aplausos (John Reed).
“Devemos agora tratar de construir a ordem socialista”- bradou.
Quando Kámenev e Trotski propuseram abolir a pena capital no
exército, Lênin ouviu, pensou e respondeu ser uma ideia absurda. “Como vocês
querem fazer uma revolução sem fuzilar gente?”. Kerensky e sua gente
exilaram-se na Embaixada dos EUA.
O poder já estava em outras mãos e o povo continuava na sua vida
rotineira. Assim foi a Revolução Russa, que muitos historiadores questionam,
indagando se não foi um golpe. Alguns preferem situar o desfecho como golpe e
revolução.
Os mencheviques, os socialistas revolucionários de direita e parte
da social-democraciaeuropéia denunciaram o caráter golpista da insurreição. O
Conselho dos Comissários do Povo, com o ingresso dos socialistas
revolucionários, passou a ser dirigido por Lênin. Foi instalada uma ditadura
política que perdurou por mais de 80 anos.
Antes da situação ficar consolidada aconteceram muitos conflitos,
divergências e dissidências (matança do tzar e sua família), resultando numa
guerra civil nos anos seguintes entre brancos e os revolucionários vermelhos.
Somente em 1920 os bolcheviques assumiram de vez o comando do
Estado. A Rússia estava arrasada e isolada, sofrendo escassez de tudo. Para
completar a situação, em março de 1921 os marinheiros de Kronstadt se rebelaram
em solidariedade aos grevistas; pela liberdade de expressão; libertação de
presos políticos; e outras reivindicações.
DE LÊNIN PARA STÁLIN
Por fim, as forças bolcheviques esmagaram os marinheiros, mas o
país entrou em ruínas. Entre 1921/22 a fome, as truculências do poder e as
epidemias dizimaram mais de cinco milhões de pessoas. Com a morte de Lênin em
1924, Stálin (IóssifVissariónovichDjugachvíli) toma o poder na base da força,
esmagando antigos companheiros de luta e inimigos. Passa, então, a comandar,
com mão-de-ferro, a União Soviética até 1954, matando de forma impiedosa e
cruel quem atravessasse em sua frente.
Para sua ascensão, o próprio Stálin reconhecia que os quadros
intermediários foram decisivos, como interpreta o escritor SlavojZizek em “As
Portas da Revolução – escritos de Lênin de 1917”. Ele tinha o slogan de que “as
pessoas são nossa maior riqueza”. Talvez Stálin estivesse se referindo aos
quadros. Depois de Lênin, Trotski era o mais popular, mas Stálin tinha o apoio
dos quadros intermediários.
Na qualidade de secretário Geral do Partido, Stálin indicou
milhares de pessoas que “mereciam” ter tido seus cargos desde o início dos anos
20. É por isso, segundo Slavoj, que Stálin não queria que Lênin morresse em
1922, recusando seu pedido para que lhe dessem veneno para dar cabo da vida,
depois que fora vítima de um derrame. Como secretário Geral, Stálin ainda não
havia dominado o partido. Precisava de mais tempo para, através do trabalho de
seus quadros, triunfar sobre figuras mais antigas. E foi o que aconteceu em
1924 quando Lênin morreu.
No pensamento de Brecht, um comunista diz a verdade quando ela é
necessária, e mente quando é necessário; ele é gentil quando necessário e bruto
quando necessário; ele é honesto quando necessário e trai quando necessário...
De todas as virtudes, possui apenas uma: ele luta pelo comunismo.
Nisso, estava, sem querer, mostrando como Stálin encarava a
moralidade e como agia para chegar ao poder. No sentido foucaultiano, sua ética
se resumia no cuidado consigo mesmo. Era perverso e destruidor, quando
necessário.
Nenhum comentário:
Postar um comentário