A REVOLUÇÃO QUE SACUDIU O MUNDO (II)
ÀS PORTAS DA REVOLUÇÃO
Jeremias Macário
Com trapalhadas e tudo, vandalismos e vexames, sob o comando de
Lênin, Stalin e Trotski, na madrugada de 26 de outubro de 1917, os
revolucionários bolcheviques deram o golpe final e fatal
no reinado do tzar Nicolau II, iniciando outra feroz ditadura.
A sucessão de erros do antigo regime na guerra e o agravamento da
crise facilitou a ação intensa dos movimentos sociais, no período de 23 a 27 de
fevereiro de 1917, em Petrogrado, derrubando uma autocracia de trezentos anos.
Segundo os historiadores, foi uma revolução anunciada, mas inesperada. “Uma
revolução anônima, sem líderes ou partidos dirigentes,” assim classificou o professor
e pesquisador Daniel Reis Filho.
Como descreve Simon SebagMontefiore, em seu livro “O Jovem
Stálin”, o tiroteio, os tumultos e a alegria da “Revolução de Fevereiro”
mudaram completamente o clima da capital. Carros blindados percorreram as ruas
tocando buzinas, cheios de trabalhadores; garotas com pouca roupa e soldados
acenavam suas bandeiras empunhando armas. Gráficas produziram jornais que
representavam todas as opiniões políticas. Panfletos descreveram a ninfomania
lésbica e lúbrica da imperatriz derrubada e suas orgias com Rasputin.
O tzar abdicou em dois de março, dando início ao fim dos Romanov.
Criou-se um vácuo no poder, preenchido pela “Duma” com um governo provisório,
encabeçado pelo príncipe Lvov. Formou-se, então, uma frente moderada-liberal
(Kerenski) com cores capitalistas.
Foi decretada anistia geral aos presos e exilados, reconhecendo-se
a liberdade de expressão e organização. Porém, a questão primordial para Lênin
era salvar a revolução. O governo provisório continuava insensível,
intransigente e agarrado ao conservadorismo político. Pouco se avançou. A
agonia persistia com os conflitos. Esperava-se o fim da guerra.
Da Suíça, Lênin atacava o governo provisório e exigia paz com a
Alemanha. Em Petrogrado, Stálin e Kamenev se aproximavam da direita e tentavam
uma conciliação, para atrair os mencheviques radicais. Do exílio, Lênin começou
a escrever cartas para corrigir os erros dos camaradas.
Incomodado com a situação, Lênin descobriu uma maneira de
retornar. Com sua mulher Krúpskaia e seu companheiro Zinoviev, o líder embarcou
num trem, se fingindo de surdo-mudo sueco. Através de suas armações, dominou o
trem; aprovou a proibição de fumar; ditou as regras; e, em três de abril, parou
com seu camarada e a mulher na estação Beloostrov, na fronteira
russo-filandesa. Ainda no vagão da terceira classe, deu uma bronca em Kamenev:
“Que diabo você anda escrevendo”? Stálin procurou disfarçar e recebeu o
camarada, que naquela época tinha 46 anos e estava irado e violento, como
assinala o escritor Simon Sebag.
Em sua descida na estação, o misterioso Lênin encontrou o povo
fazendo sua festa revolucionária, e uma banda tocou “A Marselhesa”. Uma
multidão acenava bandeiras vermelhas e uma falange bolchevique escoltou Lênin
em um carro blindado, de onde discursou dizendo que o governo provisório estava
enganando o povo da Rússia. Os bolcheviques deveriam derrubar o governo e
passar o poder para os sovietes – gritou emocionado.
Sobre aquele momento, o escritor Sebag anotou que o povo ansiava
por paz e terra, enquanto o governo insistia em lutar contra a Alemanha, como
queria o tzar. Lênin percebia que era chegada a hora de dar o golpe final.
Ainda em abril, surgiu a primeira crise política, quando o
ministro das Relações Exteriores disse que a Rússia revolucionária mantinha os
objetivos da guerra do regime tzarista. Os bolcheviques se apressaram e fizeram
uma conferência apoiando a tese de Lênin: “Todo Poder aos Sovietes,” que não
mais confiavam no governo provisório e queriam o poder em suas mãos.
No início de maio, de acordo com os historiadores, Trotski chega
da América (EUA) e logo com seu carisma nos discursos inflamados cativou toda
Petrogrado. Ele se sentiu embriagado com sua popularidade, e Lênin reconheceu
suas virtudes. Foi convidado para se unir aos bolcheviques, mas Lênin ficou de
olho na sua ambição. Stálin se ressentiu, mas percebeu ser mais valioso atrás
das cenas, o que ele mais sabia fazer desde jovem.
Em junho de 1917 foram realizados vários congressos entre
camponeses, operários e soldados. Os mencheviques não aceitavam entregar o
governo e também se movimentavam, mas estavam enfraquecidos diante da
população. O clima político esquentava.
Em julho, marinheiros da base naval de Kronstadt e operários
revoltaram-se e mataram 120 oficiais. Depois da tragédia, exigiram de Lênin a ordem
para marchar e tomar a capital da Rússia, que não estava bem na guerra. Como
não obtiveram respostas, procuraram Stálin que apenas disse: Vocês camaradas é
que sabem, dando sinais de encorajamento para o golpe. Como depois reconheceu
Trotski, Stálin era um dos organizadores da revolta. Depois de muitas marchas,
com a participação dos sovietes, o governo foi reforçado. Kerensky, que era
ministro da Guerra, passou a ser chefe da nação e culpou os bolcheviques por conspiração
de Golpe de Estado.
Kerensky saiu fortalecido e com popularidade. Para piorar, o
ministro da Justiça publicou uma denuncia de que Lênin tivera apoio financeiro
da Alemanha, que estava em guerra contra a Rússia. Da fortaleza “Pedro e Paulo”,
Stálin tentou negociar a rendição. A opinião pública virou-se contra os
bolcheviques, e o governo mandou prender Lênin.
Sob a proteção de Stálin, o velho líder se escondeu e voltou para
a clandestinidade. Em três dias mudou de endereço cinco vezes, até ficar em um
apartamento. Trotski e Kamenev foram presos, mas o governo queria mesmo era
Lênin. Os camaradas divergiam entre o chefe se entregar ou fugir. O receio de
Stálin era que Lênin seria morto se se entregasse.
FRACASSO E FUGA
O líder tinha que ser retirado às pressas de Petrogrado. Então,
Lênin resolveu tirar a barba e o bigode. No quarto, ao lado do retrato de
Tolstoi, aconteceu uma cena memorável e histórica. O camarada Stálin, que
também tinha o apelido de “Sossó”, desde menino em Góri, na Geórgia, se
preparou e fez a barba de Lênin, que foi escondido num celeiro, na Finlândia.
Enquanto isso, Stálin fez vários artigos fulminando Kerenski que prometeu
afogar os revolucionários como moscas no leite.
A situação piorava e os conflitos se sucediam. Como alternativa, o
novo governo convocou uma conferência de Estado, em Moscou, longe da
turbulência de Petrogrado. Os sovietes só tinham 429 deputados dos 2.500
representantes do povo. Kamenev e Trotski estavam presos. Lênin era denunciado
como agente que ajudava os alemães e teve que sumir. Mesmo assim, em fins de
julho, o partido realizou o VI Congresso na clandestinidade.
Nessa confusão toda, foi projetada a figura do general Kornilov
que, achando ter chegada sua hora, desfechou um golpe militar para acabar de
vez com os revolucionários, mas não contou com o apoio de Kerensky. Os sovietes
e suas organizações enfrentaram o general, que terminou sendo preso. Todos
esses conflitos combinavam com os movimentos de ocupação de terras.
Kerensky corria contra o tempo. Marcou uma conferência; proclamou
a República; e convocou nova Assembleia Constituinte. Em fins de agosto, em
Kiev, na Ucrânia, delegados de treze nações apelaram para as assembleias
constituintes soberanas. A sociedade vivia em plena degradação.
Diante de tudo isso, Lênin, mesmo de fora, comandava e agitava
suas forças. A bolchevização dos sovietes em Petrogrado e Moscou dava ao
partido uma situação favorável. A insurreição precisava ser preparada e
desencadeada antes do II Congresso Soviético, marcado para 25 de outubro. Era a
proposta de Lênin, mas Zinoviev e Kámenev não concordavam. Por sua vez, um
jornal bolchevique se encarregava de agitar mais ainda os soldados.
Estava chegando a hora e uma espera a mais seria fatal, como
alertou o inquieto e desesperado Lênin em sua carta de 15 de setembro: “A
história não nos perdoará se não assumirmos o poder agora”. Lênin queria pressa
para não perder o bonde. Estava faminto por um desfecho.
Stálin e Trotski apoiaram o líder, que chamou Kámenev e Zinóviev
de traidores miseráveis. Era a chamada luta interna que rachava o grupo. Apesar
de tudo, no dia 25 de setembro, os bolcheviques assumiram o controle dos
sovietes, e Trotski ficou no comando das forças militares. Nesse tempo, Lênin
conseguiu voltar da Finlândia e se esconder num confortável apartamento, de
onde agitava com suas mensagens de guerra. “Melhor morrer como homem do que
deixar o inimigo passar” – bradava o líder, que destilava toda sua raiva contra
o governo.
A HORA DO DUELO DE MORTE
Petrogrado era uma cidade desgovernada, tomada pelos prazeres e
violência. O número de assaltos aumentava. As prostitutas e a marginalidade
invadiam o centro. A escassez de alimentos piorava e as filas cresciam, mas os
ricos continuavam frequentando restaurantes elegantes. Um escritor chegou a
dizer que a Rússia vivia como se estivesse numa plataforma de trem, esperando o
apito do guarda. Trotski dizia que o tempo das palavras havia passado. Para ele,
chegava a hora do duelo de morte entre a revolução e a contrarrevolução.
Disfarçados num apartamento, os onze altos bolcheviques (O Grupo
dos
Onze) se reuniram no dia 10 de outubro. Lênin argumentou que a
situação política estava madura e preparada para a mudança de poder. Alguns
ainda discordavam, mas foram convencidos, fora Zinóviev e Kámenev, que temiam o
destino da Revolução Russa.
Em 16 de outubro houve uma nova reunião secreta, e Lênin,
disfarçado com uma peruca, reprovou duramente os hesitantes. Estava
visivelmente irritado e transtornado. Das suas palavras pareciam sair labaredas
de fogo. Lênin ganhou a parada. Os dois contrários seriam castigados depois.
Petrogrado vivia a ameaça do avanço dos alemães. Stálin e Trotski que pediam a
expulsão dos “fura-greves” não se entendiam.
No dia 21 de outubro, o Comitê Militar Revolucionário declarou ser
a autoridade sobre a guarnição de Petrogrado. Stálin cuidou de organizar a
pauta para o II Congresso dos Sovietes. No dia 23, o Comitê assumiu o comando da
fortaleza “Pedro e Paulo”, e Stálin escrevia no jornal: “O governo atual de
latifundiários e capitalistas deve ser substituído por um governo de operários
e camponeses”.
O governo de Kerenski, sem forças, ainda tentou reagir invadindo a
gráfica dos jornais dos revolucionários que, com muito esforço, conseguiu
circular os impressos, e Stálin recuperou o parque. Na reunião em que as
tarefas foram distribuídas para tomar o poder, Stálin não pode comparecer.
Disseram que ele havia perdido a Revolução, mas chegou a tempo.
Lênin continuava gritando que não podia mais esperar. Os Guardas Vermelhos
estavam a caminho e a sorte estava lançada. Mesmo no corre-corre, Stálin sempre
mantinha Lênin informado sobre tudo o que acontecia.
Não foi sem motivo que a Revolução Russa se tornaria tempos
depois, em um dos eventos mais emblemáticos da história do século XX,
transformada em mito e romantizado em “Os Dez Dias que Abalaram o Mundo”, de
John Reed, como escreveu Simon Sebag.
Na noite de 24 para 25, Lênin pôs uma peruca, um boné de operário,
uma atadura no rosto e, de óculos escuros, partiu noite afora com seu segurança
Rakhia. Perto do Quartel General dos Bolcheviques, no Smólni, chegou a ser
barrado, mas depois foi liberado. Os guardas acharam que aquele homem era mais
um bêbado perturbador.
Os pontos estratégicos da cidade foram ocupados no dia 24 de
outubro pelas forças militares dos sovietes. Na manhã do dia 25 Lênin começava
a redigir os decretos fundamentais sobre “Terra e Paz”. O comando ficou em
sessão permanente; mensagens chegavam sem parar; e o Comitê Militar emitia
ordens. Estava chegando a hora da tomada.
No início, a usina de eletricidade e a sede dos Correios, na
Estação Nicolau, foram conquistadas. Conseguiram dominar todas as pontes, menos
a Nicolau, ao lado do Palácio do Inverno. No entanto, outros pontos
estratégicos foram rendidos. Apesar de tudo, o governo continuou a funcionar,
mesmo precariamente. Kerenski resolveu sair da cidade num carro da Embaixada
Americana para procurar reforços.
Quatrocentos cadetes militares adolescentes guardavam o Palácio de
Inverno, além de um Batalhão de Choque Feminino e esquadrões de cossacos. Tudo
tinha um ar cômico naquele palco da Revolução, como descreveu a americana
Louise Bryant, uma dos muitos jornalistas que estavam lá naquele dia. Do lado
de fora, os bolcheviques continuavam reunindo suas forças, mas sem organização.
O Palácio de Inverno ainda se mantinha firme. Nas discussões
paralelas sobre a forma organizacional do novo governo, Lênin indicou o nome de
Trotski para primeiro-ministro. Era judeu e não podia assumir o posto. Trotski
recusou e insistiu que deveria ser Lênin, que propôs Stálin para o cargo de
Comissariado do Povo para as Nacionalidades. Quanto ao Palácio de Inverno que
ainda resistia, Trotski e o CMR (Conselho Militar Revolucionário) ordenaram o
bombardeio, mas descobriram que só havia seis canhões disponíveis. Os oficiais
disseram que estavam quebrados, mas precisavam apenas ser limpos.
Ao entardecer do dia 25, Lênin se mostrava agitado e ansioso para
ir à luta. Sua ânsia era acabar de uma vez com o governo de Kerenski. Às 18
horas, os cadetes militares, os cossacos e as mulheres do Batalhão de Choque
deixaram seus postos no Palácio para procurar comida.
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