domingo, 22 de outubro de 2017

JEREMIAS MACÁRIO - COLUNISTA VIP:

A REVOLUÇÃO QUE SACUDIU O MUNDO (II)

ÀS PORTAS DA REVOLUÇÃO
Jeremias Macário
Com trapalhadas e tudo, vandalismos e vexames, sob o comando de Lênin, Stalin e Trotski, na madrugada de 26 de outubro de 1917, os revolucionários bolcheviques deram o golpe final e fatal no reinado do tzar Nicolau II, iniciando outra feroz ditadura.

A sucessão de erros do antigo regime na guerra e o agravamento da crise facilitou a ação intensa dos movimentos sociais, no período de 23 a 27 de fevereiro de 1917, em Petrogrado, derrubando uma autocracia de trezentos anos. Segundo os historiadores, foi uma revolução anunciada, mas inesperada. “Uma revolução anônima, sem líderes ou partidos dirigentes,” assim classificou o professor e pesquisador Daniel Reis Filho.
Como descreve Simon SebagMontefiore, em seu livro “O Jovem Stálin”, o tiroteio, os tumultos e a alegria da “Revolução de Fevereiro” mudaram completamente o clima da capital. Carros blindados percorreram as ruas tocando buzinas, cheios de trabalhadores; garotas com pouca roupa e soldados acenavam suas bandeiras empunhando armas. Gráficas produziram jornais que representavam todas as opiniões políticas. Panfletos descreveram a ninfomania lésbica e lúbrica da imperatriz derrubada e suas orgias com Rasputin.
O tzar abdicou em dois de março, dando início ao fim dos Romanov. Criou-se um vácuo no poder, preenchido pela “Duma” com um governo provisório, encabeçado pelo príncipe Lvov. Formou-se, então, uma frente moderada-liberal (Kerenski) com cores capitalistas.
Foi decretada anistia geral aos presos e exilados, reconhecendo-se a liberdade de expressão e organização. Porém, a questão primordial para Lênin era salvar a revolução. O governo provisório continuava insensível, intransigente e agarrado ao conservadorismo político. Pouco se avançou. A agonia persistia com os conflitos. Esperava-se o fim da guerra.
Da Suíça, Lênin atacava o governo provisório e exigia paz com a Alemanha. Em Petrogrado, Stálin e Kamenev se aproximavam da direita e tentavam uma conciliação, para atrair os mencheviques radicais. Do exílio, Lênin começou a escrever cartas para corrigir os erros dos camaradas.
Incomodado com a situação, Lênin descobriu uma maneira de retornar. Com sua mulher Krúpskaia e seu companheiro Zinoviev, o líder embarcou num trem, se fingindo de surdo-mudo sueco. Através de suas armações, dominou o trem; aprovou a proibição de fumar; ditou as regras; e, em três de abril, parou com seu camarada e a mulher na estação Beloostrov, na fronteira russo-filandesa. Ainda no vagão da terceira classe, deu uma bronca em Kamenev: “Que diabo você anda escrevendo”? Stálin procurou disfarçar e recebeu o camarada, que naquela época tinha 46 anos e estava irado e violento, como assinala o escritor Simon Sebag.
Em sua descida na estação, o misterioso Lênin encontrou o povo fazendo sua festa revolucionária, e uma banda tocou “A Marselhesa”. Uma multidão acenava bandeiras vermelhas e uma falange bolchevique escoltou Lênin em um carro blindado, de onde discursou dizendo que o governo provisório estava enganando o povo da Rússia. Os bolcheviques deveriam derrubar o governo e passar o poder para os sovietes – gritou emocionado.
Sobre aquele momento, o escritor Sebag anotou que o povo ansiava por paz e terra, enquanto o governo insistia em lutar contra a Alemanha, como queria o tzar. Lênin percebia que era chegada a hora de dar o golpe final.
Ainda em abril, surgiu a primeira crise política, quando o ministro das Relações Exteriores disse que a Rússia revolucionária mantinha os objetivos da guerra do regime tzarista. Os bolcheviques se apressaram e fizeram uma conferência apoiando a tese de Lênin: “Todo Poder aos Sovietes,” que não mais confiavam no governo provisório e queriam o poder em suas mãos.
No início de maio, de acordo com os historiadores, Trotski chega da América (EUA) e logo com seu carisma nos discursos inflamados cativou toda Petrogrado. Ele se sentiu embriagado com sua popularidade, e Lênin reconheceu suas virtudes. Foi convidado para se unir aos bolcheviques, mas Lênin ficou de olho na sua ambição. Stálin se ressentiu, mas percebeu ser mais valioso atrás das cenas, o que ele mais sabia fazer desde jovem.
Em junho de 1917 foram realizados vários congressos entre camponeses, operários e soldados. Os mencheviques não aceitavam entregar o governo e também se movimentavam, mas estavam enfraquecidos diante da população. O clima político esquentava.
Em julho, marinheiros da base naval de Kronstadt e operários revoltaram-se e mataram 120 oficiais. Depois da tragédia, exigiram de Lênin a ordem para marchar e tomar a capital da Rússia, que não estava bem na guerra. Como não obtiveram respostas, procuraram Stálin que apenas disse: Vocês camaradas é que sabem, dando sinais de encorajamento para o golpe. Como depois reconheceu Trotski, Stálin era um dos organizadores da revolta. Depois de muitas marchas, com a participação dos sovietes, o governo foi reforçado. Kerensky, que era ministro da Guerra, passou a ser chefe da nação e culpou os bolcheviques por conspiração de Golpe de Estado.
Kerensky saiu fortalecido e com popularidade. Para piorar, o ministro da Justiça publicou uma denuncia de que Lênin tivera apoio financeiro da Alemanha, que estava em guerra contra a Rússia. Da fortaleza “Pedro e Paulo”, Stálin tentou negociar a rendição. A opinião pública virou-se contra os bolcheviques, e o governo mandou prender Lênin.
Sob a proteção de Stálin, o velho líder se escondeu e voltou para a clandestinidade. Em três dias mudou de endereço cinco vezes, até ficar em um apartamento. Trotski e Kamenev foram presos, mas o governo queria mesmo era Lênin. Os camaradas divergiam entre o chefe se entregar ou fugir. O receio de Stálin era que Lênin seria morto se se entregasse.


FRACASSO E FUGA

O líder tinha que ser retirado às pressas de Petrogrado. Então, Lênin resolveu tirar a barba e o bigode. No quarto, ao lado do retrato de Tolstoi, aconteceu uma cena memorável e histórica. O camarada Stálin, que também tinha o apelido de “Sossó”, desde menino em Góri, na Geórgia, se preparou e fez a barba de Lênin, que foi escondido num celeiro, na Finlândia. Enquanto isso, Stálin fez vários artigos fulminando Kerenski que prometeu afogar os revolucionários como moscas no leite.
A situação piorava e os conflitos se sucediam. Como alternativa, o novo governo convocou uma conferência de Estado, em Moscou, longe da turbulência de Petrogrado. Os sovietes só tinham 429 deputados dos 2.500 representantes do povo. Kamenev e Trotski estavam presos. Lênin era denunciado como agente que ajudava os alemães e teve que sumir. Mesmo assim, em fins de julho, o partido realizou o VI Congresso na clandestinidade.
Nessa confusão toda, foi projetada a figura do general Kornilov que, achando ter chegada sua hora, desfechou um golpe militar para acabar de vez com os revolucionários, mas não contou com o apoio de Kerensky. Os sovietes e suas organizações enfrentaram o general, que terminou sendo preso. Todos esses conflitos combinavam com os movimentos de ocupação de terras.
Kerensky corria contra o tempo. Marcou uma conferência; proclamou a República; e convocou nova Assembleia Constituinte. Em fins de agosto, em Kiev, na Ucrânia, delegados de treze nações apelaram para as assembleias constituintes soberanas. A sociedade vivia em plena degradação.
Diante de tudo isso, Lênin, mesmo de fora, comandava e agitava suas forças. A bolchevização dos sovietes em Petrogrado e Moscou dava ao partido uma situação favorável. A insurreição precisava ser preparada e desencadeada antes do II Congresso Soviético, marcado para 25 de outubro. Era a proposta de Lênin, mas Zinoviev e Kámenev não concordavam. Por sua vez, um jornal bolchevique se encarregava de agitar mais ainda os soldados.
Estava chegando a hora e uma espera a mais seria fatal, como alertou o inquieto e desesperado Lênin em sua carta de 15 de setembro: “A história não nos perdoará se não assumirmos o poder agora”. Lênin queria pressa para não perder o bonde. Estava faminto por um desfecho.
Stálin e Trotski apoiaram o líder, que chamou Kámenev e Zinóviev de traidores miseráveis. Era a chamada luta interna que rachava o grupo. Apesar de tudo, no dia 25 de setembro, os bolcheviques assumiram o controle dos sovietes, e Trotski ficou no comando das forças militares. Nesse tempo, Lênin conseguiu voltar da Finlândia e se esconder num confortável apartamento, de onde agitava com suas mensagens de guerra. “Melhor morrer como homem do que deixar o inimigo passar” – bradava o líder, que destilava toda sua raiva contra o governo.

A HORA DO DUELO DE MORTE

Petrogrado era uma cidade desgovernada, tomada pelos prazeres e violência. O número de assaltos aumentava. As prostitutas e a marginalidade invadiam o centro. A escassez de alimentos piorava e as filas cresciam, mas os ricos continuavam frequentando restaurantes elegantes. Um escritor chegou a dizer que a Rússia vivia como se estivesse numa plataforma de trem, esperando o apito do guarda. Trotski dizia que o tempo das palavras havia passado. Para ele, chegava a hora do duelo de morte entre a revolução e a contrarrevolução.
Disfarçados num apartamento, os onze altos bolcheviques (O Grupo dos
Onze) se reuniram no dia 10 de outubro. Lênin argumentou que a situação política estava madura e preparada para a mudança de poder. Alguns ainda discordavam, mas foram convencidos, fora Zinóviev e Kámenev, que temiam o destino da Revolução Russa.
Em 16 de outubro houve uma nova reunião secreta, e Lênin, disfarçado com uma peruca, reprovou duramente os hesitantes. Estava visivelmente irritado e transtornado. Das suas palavras pareciam sair labaredas de fogo. Lênin ganhou a parada. Os dois contrários seriam castigados depois. Petrogrado vivia a ameaça do avanço dos alemães. Stálin e Trotski que pediam a expulsão dos “fura-greves” não se entendiam.
No dia 21 de outubro, o Comitê Militar Revolucionário declarou ser a autoridade sobre a guarnição de Petrogrado. Stálin cuidou de organizar a pauta para o II Congresso dos Sovietes. No dia 23, o Comitê assumiu o comando da fortaleza “Pedro e Paulo”, e Stálin escrevia no jornal: “O governo atual de latifundiários e capitalistas deve ser substituído por um governo de operários e camponeses”.
O governo de Kerenski, sem forças, ainda tentou reagir invadindo a gráfica dos jornais dos revolucionários que, com muito esforço, conseguiu circular os impressos, e Stálin recuperou o parque. Na reunião em que as tarefas foram distribuídas para tomar o poder, Stálin não pode comparecer.
Disseram que ele havia perdido a Revolução, mas chegou a tempo. Lênin continuava gritando que não podia mais esperar. Os Guardas Vermelhos estavam a caminho e a sorte estava lançada. Mesmo no corre-corre, Stálin sempre mantinha Lênin informado sobre tudo o que acontecia.
Não foi sem motivo que a Revolução Russa se tornaria tempos depois, em um dos eventos mais emblemáticos da história do século XX, transformada em mito e romantizado em “Os Dez Dias que Abalaram o Mundo”, de John Reed, como escreveu Simon Sebag.
Na noite de 24 para 25, Lênin pôs uma peruca, um boné de operário, uma atadura no rosto e, de óculos escuros, partiu noite afora com seu segurança Rakhia. Perto do Quartel General dos Bolcheviques, no Smólni, chegou a ser barrado, mas depois foi liberado. Os guardas acharam que aquele homem era mais um bêbado perturbador.
Os pontos estratégicos da cidade foram ocupados no dia 24 de outubro pelas forças militares dos sovietes. Na manhã do dia 25 Lênin começava a redigir os decretos fundamentais sobre “Terra e Paz”. O comando ficou em sessão permanente; mensagens chegavam sem parar; e o Comitê Militar emitia ordens. Estava chegando a hora da tomada.
No início, a usina de eletricidade e a sede dos Correios, na Estação Nicolau, foram conquistadas. Conseguiram dominar todas as pontes, menos a Nicolau, ao lado do Palácio do Inverno. No entanto, outros pontos estratégicos foram rendidos. Apesar de tudo, o governo continuou a funcionar, mesmo precariamente. Kerenski resolveu sair da cidade num carro da Embaixada Americana para procurar reforços.
Quatrocentos cadetes militares adolescentes guardavam o Palácio de Inverno, além de um Batalhão de Choque Feminino e esquadrões de cossacos. Tudo tinha um ar cômico naquele palco da Revolução, como descreveu a americana Louise Bryant, uma dos muitos jornalistas que estavam lá naquele dia. Do lado de fora, os bolcheviques continuavam reunindo suas forças, mas sem organização.
O Palácio de Inverno ainda se mantinha firme. Nas discussões paralelas sobre a forma organizacional do novo governo, Lênin indicou o nome de Trotski para primeiro-ministro. Era judeu e não podia assumir o posto. Trotski recusou e insistiu que deveria ser Lênin, que propôs Stálin para o cargo de Comissariado do Povo para as Nacionalidades. Quanto ao Palácio de Inverno que ainda resistia, Trotski e o CMR (Conselho Militar Revolucionário) ordenaram o bombardeio, mas descobriram que só havia seis canhões disponíveis. Os oficiais disseram que estavam quebrados, mas precisavam apenas ser limpos.
Ao entardecer do dia 25, Lênin se mostrava agitado e ansioso para ir à luta. Sua ânsia era acabar de uma vez com o governo de Kerenski. Às 18 horas, os cadetes militares, os cossacos e as mulheres do Batalhão de Choque deixaram seus postos no Palácio para procurar comida.


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