A MADRINHA
Nando da Costa Lima
Tem muito
tempo..., o povo ainda chamava sutiã de califon. Dona Rogaciana das Dores
estava tricotando uma capa de rifle para guardar a “papo-amarelo” do finado
marido quando a sobrinha correu porta adentro aos prantos. Silvelina era a sobrinha
preferida de dona Das Dores, por ela a velha fazia qualquer coisa... O motivo
do choro a velha já sabia: é que a sobrinha já tava passando dos “trintas” e
nada de casamento. Ela era muito exigente, homem pra ela tinha que ser alto, “dotô”
e “pão” (“pão” era o “gato” de hoje). Ela tava se derretendo no choro, como
acontecia em todo aniversário. Era mais um ano sem casório! Foi o jeito dona
Rogaciana jogar o tricô pro lado, ela não negava nada pra “menina”, e agora a
sobrinha achava que só um “rezadô” podia abrir os caminhos dela, tinha certeza
que era feitiço. Mesmo sendo uma católica praticante, ela não negou o pedido da
sobrinha... “Coitada, as amigas já estão tudo casadas. Também, essa mania de
homem alto”. Mesmo assim, a matriarca resolveu fazer a vontade de Silvelina.
Mandou chamar logo um afilhado de confiança, aquela consulta tinha que ser
sigilosa. Quando o rapaz chegou, pediu “bença” pra madrinha e perguntou:
— Qual é o problema, madrinha?
— Conheço, madrinha. A senhora quer
que eu jogue ele pra traz ou basta amaciar no cabo de machado e soltar na
caatinga???
— Não é nada disso, seu ignorante.
Seu Otoniel é tudo como um homem santo, eu quero que você vá buscar ele pra
resolver um problema da minha sobrinha... Coisa de mulher!
— Madrinha, madrinha. Esse homem
tem fama de “boca preta”, já embuchou mais de vinte. A senhora vai deixar ele
passar o ramo em Silvelina, sozinha? Eu acho...
— Pode calar a boca, Cleonildo. Eu
tô dando uma ordem, não estou pedindo favor nem opinião.
— Tá bom, madrinha. Eu vou lá no
buracão chamar o “rezadô”.
Quando
Cleonildo chegou na Baixa do Buracão, ainda era cedo. Tava montado num burro e
puxando outro pra trazer o rezador. Seu Otoniel Rezadô tava tomando uma
Jurubeba Leão do Norte “camuflada”. O pessoal chama de “camuflada” porque o
butequeiro coloca a Jurubeba num copo de vidro e quando aparece alguém que não
gosta de biriteiro (patrão, esposa, filho, mãe e, principalmente, cliente),
você começa a soprar o copo como se estivesse esfriando um cafezinho. O dono do
bar comprou uma garrafa térmica que cabe 2 garrafas, tem biriteiro que usa até
um pão de sal na outra mão pro disfarce ficar perfeito.
Cleonildo
falou que estava à procura de um “rezadô” famoso que morava por ali. Otoniel
deu uma soprada no copo e perguntou do que se tratava. O afilhado foi logo
dando o recado.
— Eu tô aqui a mando de madrinha
“Dasdô”, da fazenda Lagoa Barrenta. Ela quer que o senhor me acompanhe até lá,
tá precisando de seus serviços urgentemente.
Otoniel
se interessou, sabia que a viúva era rica e pagava bem! Só tava estranhando
ela, uma católica praticante, mandar buscar um rezador. Tava curioso e cismado!
Só foi porque sabia que o dinheiro era certo. No caminho da fazenda, Cleonildo
abriu o jogo. Contou tudo que estava se passando pro “rezadô”.
— É que tia Silvelina, a sobrinha
preferida de madrinha, tá achando que não se casou ainda por causa de feitiço.
Já enforcou mais de 50 Santo Antônio e nada! Ela só casa se o homem for alto,
tem que ter de 1,70 pra “riba”.
Otoniel
notou que Cleonildo gostava de conversar e aproveitou pra indagar mais coisa.
— E esta moça já teve algum
namorado?
— Namorado mesmo, não! Teve um dotô
que se apaixonou por ela, mas Silvelina não deu nem bola quando soube que o
homem era escritor e não era alto.
Não
era bem assim. O doutor media 1,60 e, para a época, estava na média. O problema
é que ele era escritor e gostava de beber, fora a brutalidade. Toda vez que
lançava um livro, falava a frase que já tinha virado jargão: “Quer ler, leia!
Se não quiser vai se fuder”. Ele fez inúmeras tentativas, mas em todas foi
humilhado pela pretendente.Morreu sem conseguir nada com Silvelina. Ninguém
sabe se morreu de amor ou de cachaça. Segundo os colegas de copo, ele enfartou
quando viu um exemplar de um de seus livros servindo de papel higiênico num buteco.
Dizem que já caiu morto segurando a capa do livro. Só pode ter sido “raiva”!
Depois
das revelações de Cleonildo, o rezador já estava com a receita pronta e sabia
até quanto deveria cobrar. Quando eles chegaram na fazenda, já era noite.
Depois das apresentações, Otoniel quis impressionar a velha e falou sério:
— Tô sentindo o cheiro de
desodorante vencido no ambiente, isto é encosto de poeta. Por acaso Silvelina
teve algum namorocom poeta ou artista?
Dona
“Dasdô” coçou a verruga e falou do “dotô” que era apaixonado pela sobrinha.Mas
ele era escritor, não poeta!
— Dá no mesmo, encosto de artista é
difícil de tirar. Fica até mais caro, e eu só trabalho à vista antecipado!
Quando
dona “Dasdô” falou que dinheiro não era problema, Otoniel logo mandou chamar
Silvelina pra ele passar o ramo e receitar. Como a ideia de chamar um rezador
foi da própria sobrinha dedona Rogaciana, ela apareceu rapidamente. O rezador
mandou ela ajoelhar, colocou a mão na cabeça da moça e ditou a receita de olhos
fechados, já mudando a voz:
— Vosmicê pega um vestido branco,
veste sem usar “caçola” nem califon. A sinhorinha vai atravessar o cemitério
ajoelhada. Vosmicê deve tomar cuidado prumode não acordar as almas. Tem que ser
de noite!
Aí
Silvelina ficou desesperada, ela tinha pavor a cemitério. À noite, então. Cruz
credo! Então o “rezadô” já falou com com voz de galã:
— Você pode ficar sossegadinha que
eu vou te acompanhar.
Aí
dona das Dores entrou na conversa:
— Quer dizer que o senhor tá
pretendendo levar Silvelina pro fundo do cemitério, meia-noite, e sem “caçola”?!
E
já quase fora de si, chamou o afilhado aos berros:
— Cleonildo, tá na hora de levar seu
Otoniel Rezadô pra casa.
— Tá bom, madrinha. Os burros já
estão encilhados, precisa de mais alguma coisa???
— Não esqueça de levar o cabo de
machado...
Aí
Otoniel Rezadô nem pela porta passou. Pulou a janela, esqueceu até o dinheiro
da consulta. Correu sete léguas sem olhar pra trás. Dizem até que mudou de
religião... Silvelina permaneceu solteirona e sua tia ficou ainda mais
conhecida depois que fez um “rezadô” famoso mudar de profissão.
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