Tira o nome da avó do meio
Nando da Costa Lima
Quando
Carlos de Dona Sula e o cabo Fulgêncio se encontravam, era certo que ia ter
bate boca. Apesar de parentes, não combinavam em nada! Na política então…
Quando notavam que o buteco estava cheio, começavam a discussão. Era como uma
disputa de conhecimentos gerais misturado com política, religião e tudo que não
se deve discutir em público. A conversa sobre política tava correndo solta…
Carlos de Dona Sula, que tava tomando conta do buteco pra sua
mãe, começou:
— Pra mim, o sujeito que anda fazendo discurso sacudindo uma
bíblia no ar, ou é candidato a alguma coisa ou é doido. A maioria é doido
mesmo!
— Não é assim não, ô meu. Tem missas e cultos ao ar livre, e
é comum um irmão sacudir o livro sagrado, abençoando ou sendo abençoado.
— Mas aí é o mesmo que estar num templo. Eu tô falando é
desses doidos que tanto na chuva quanto no sol de 40 graus ficam sacudindo a
bíblia como se estivessem livrando todos do pecado.
— Se for levar pra esse lado, você até que tem um pouco de
razão. 90% desses pregadores de rua ou tiveram uma grande decepção, ou então
são santos mesmo. Ninguém se submete a gastar uma existência sacudindo uma
bíblia por aí. Mas porque essa implicância com os religiosos? O que tem de
errado em adorar o livro sagrado e política ao mesmo tempo? Tá certo que você é
um socialista convicto, daqueles que nem acreditam em religião. Mas pra que
essa perseguição…
— Não é perseguição não, cabo Fulgêncio. É que moro na
esquina de uma praça que já virou palco pra doido dar o testemunho… É o dia
todo, sai um e entra outro. Nunca vi tanto doido reunido.
— Já que você não gosta de doido, porque você não muda pra
Conquista? Lá não tem esse problema.
— Eu sei que lá é difícil de encontrar um doido, mas o
problema é que a patroa não quer se mudar de jeito nenhum. Acha que Conquista
faz muito frio.
— Então você vai ter que suportar, cada um tem seu calvário…
— Calvário porra nenhuma, essa perseguição é porque eu sou um
homem da esquerda.
— Mas Carlos, nós estamos vivendo numa democracia. Só porque
temos alguns ministros militares, você já pensa o pior. Hoje até o nível dos
militares é outro.
— Militar sempre foi militar, tá aí uma coisa que não muda. É
esquisito civil se cumprimentar batendo continência, nem na ditadura militar
tinha isso. Eles até preferiam ministros civis! Era uma maneira de maquiar a
ditadura.
— Você tá falando bobagem, onde já se viu comparar um governo
eleito pelo povo com as ditaduras antes financiadas pelas “forças ocultas”. É
claro, todo militar vai pra reserva, mas militar não aposenta, ele pode parar
de usar a farda, mas a cabeça, as atitudes, sempre serão de militar. Eu tenho
quase certeza que esse governo vai dar certo.
— Getúlio também foi eleito, já esqueceu?
— Mas hoje os tempos são outros, o povo brasileiro já não é
mais tão passivo. E tem a evolução tecnológica, nós em duas décadas evoluímos
mais que nos séculos que ficaram pra trás. A internet dá saltos quânticos, as
coisas estão acontecendo tão depressa que a TV já está em segundo plano para as
campanhas políticas. Hoje as redes sociais são quem mandam nos destinos da
política. Foi-se o tempo em que a TV podia glorificar ou destruir um governo,
mesmo assim ainda é um grande cabo eleitoral.
— Tomara que você tenha razão, mas você sabe, esse sangue
espanhol é foda… Temos que ir contra a alguma coisa.
— É, mas se você não se controlar vai acabar pegando fama de
doido, só tá faltando sacudir a bíblia pro céu. Vê se para de pensar em
política, vamos aproveitar a vida, você já não é mais nenhum menino. E por
falar em menino, quem foi que fez esse bolo de aniversário com calda de
goiabada, tá uma delícia, você nem provou. Quem fez anos aqui no buteco? Algum
frequentador?
— O bolo quem fez foi mãe, mas aquela calda vermelha que você
chamou de goiabada foi a baba de vó que tá caducando, e toda vez que mãe faz
bolo ela coloca uma vela, começa a cantar parabéns e sopra a vela. Como sua
chapa já tá vencida, arranha a gengiva e sai aquela groselha avermelhada,
ninguém come os bolos de mãe por isso… Tem gosto de goiaba mesmo, cabo
Fulgêncio?
O cabo jogou
o prato na mesa e começou a cuspir e praguejar achando que tinha sido
proposital. E partiu pro ataque.
— Olha aqui, seu subversivo filho duma puta. Eu só não lhe
aplico os rigores da lei porque você é meu primo. Mas agora a história é outra,
você quis me envenenar. Isto é crime hediondo. Por que você não avisou que
aquela velha ainda está viva?
— Envenenar como, cabo. Onde já se viu baba de velho matar
alguém. E tem outra coisa, cabo Fulgêncio. Ela também é sua avó… Além do mais,
niguém lhe ofereceu, eu estava de costas pra você, ia jogar esse bolo pros
vira-latas da rua.
— Então vamos fazer o seguinte, você não conta pra ninguém,
principalmente pra minha noiva, que eu comi do bolo, e passa a me cumprimentar
dando continência igual ao alto escalão de Brasília. Nosso país é tão
democrático que sai esquerda, entra direita, e num piscar de olhos, nós
eleitores mudamos de lado como quem muda de roupa… Viva a democracia! Antes era
até um paradoxo usar o termo “República dos Generais”. Agora não! Os tempos são
outros, ditadura é um fantasma remoto! E graças ao bom Deus, a imprensa
continua livre, intocável.
Cabo Fulgêncio bateu continência pro
primo e foi embora praguejando, enquanto se lembrava do bolo com calda de baba
de velho… Eca! Mesmo assim, estava satisfeito, tinha convencido o primo
paranóico que a pátria jamais voltaria a usar coturno. E mais uma vez, um
porta-voz com cara de ator que faz propaganda de fixador de dentadura falou que
vai dar tudo certo no país dos extremos. Que Deus te ouça e oriente o povo que
anda mais perdido do que cego em tiroteio.
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