ÚLTIMA ENTREVISTA DE CASTRO ALVES
Última
entrevista do poeta Castro Alves, concedida ao escritor e professor carioca,
Augusto Sérgio Bastos, em 1871, no Palacete do Sodré, em Salvador,
Bahia.
Castro Alves viria a
morrer um mês após haver concedido essa franca e comovente entrevista.
Quem é o
poeta Castro Alves?
Sou um homem que escreve e declama
seus poemas. Por amor, por compulsão e por herança. Um poeta brasileiro
nascido em 14 de março de 1847 lá na fazenda Cabaceiras, sete léguas distante
de Curralinho. Um baiano do sertão. Meus pais foram o doutor Antônio José
Alves e dona Clélia Brasília da Silva Castro, que também nasceu em um 14 de
março.
A família mudou para Salvador
quando eu tinha sete anos de idade. Aqui completei o curso primário e fiz o
ginasial. Aos 15, em 1862, eu e meu irmão José Antônio fomos morar no Recife
para fazer o Curso Anexo, um ano de aulas preparatórias que habilitavam às
provas da Faculdade de Direito, onde fiz o 1º e o 2º ano. Lá, ainda em 62,
pela primeira vez tive um poema publicado pela imprensa, “A destruição de
Jerusalém”, no Jornal do Recife. No ano seguinte saiu no nº 1 de um jornal
acadêmico, chamado A Primavera, o meu primeiro poema contra a escravidão: “A
canção do africano”. Em 68, fui para São Paulo continuar meus estudos
jurídicos. Completei apenas o 3º ano, sem bacharelar-me por conta de
problemas relacionados à saúde.
Mas as
publicações se sucederam, tanto no Recife como em Salvador, no Rio de Janeiro
e São Paulo; muita vez em seqüência às declamações que eu fazia nas ruas, nos
saraus e nos teatros, sempre com grande sucesso, diga-se de passagem. Alguns
desses versos, junto com muitos inéditos, hoje fazem parte do meu livro
Espumas flutuantes, primeiro e único até agora, e que foi lançado em outubro
do ano passado, aqui mesmo na Bahia, para onde voltei no final de 69.
Fale um pouco
mais sobre sua família e a infância em Salvador.
Éramos muitos irmãos: José Antônio,
Zezinho, o primogênito, poeta que se suicidou aos 19 anos; eu, Antônio
Frederico de Castro Alves, era chamado de Cecéu pelos de casa e pelos amigos;
João, que faleceu recém-nascido; Guilherme, o quarto, também poeta; aí vem a
primeira mulher, Elisa; depois Adelaide, a Sinhá, minha preferida, mas que
ninguém nos ouça; e Amélia, uma bela poetisa. Bem mais tarde, Cassianinho,
nascido das segundas núpcias de meu pai.
Papai foi um médico famoso. Estudou
na Europa, foi professor da Faculdade de Medicina, homem de talento artístico
apreciável, com o que conseguiu grupar em nossa casa uma galeria de pinturas
estrangeiras e nacionais de grande fama. Dessa paixão resultou fundar em 56,
aqui na Bahia, a Sociedade das Belas-Artes. No lar, essa influência se
exerceu na nossa educação artística: todos inclinados à música, ao canto, ao
desenho, à pintura, às letras, favorecendo disposições da natureza que seriam
consagradas. Mas papai e mamãe tinham pouca saúde. Perdi-os cedo, ela de
tuberculose, em 1859, com apenas 34 anos de idade, e papai há cinco anos, aos
48.
Voltemos ao ano de 1854, quando
fomos morar na capital, no pequeno sobrado da Rua do Rosário no 1. Essa casa,
que marcaria de forma definitiva a minha vida, era cheia de lendas e
mistérios: uma linda moça, Júlia Feital, nela foi assassinada pelo noivo que,
louco de ciúmes, a fulminou com uma bala de ouro. Eu, menino, imaginava a
cena e tinha muito medo. Ainda bem que logo depois nos mudamos.
Assim que
chegamos a Salvador, fui estudar no Colégio Sebrão, uma escola tradicional, e
depois no Ginásio Baiano, de conceitos pedagógicos avançados para a época:
estudávamos várias matérias ao mesmo tempo, não recebíamos castigos físicos e
ainda por cima éramos incentivados a participar de torneios literários. Para
mim, que já trazia o amor à arte cultivado pela família, foi uma espécie de
preliminar, desculpem a imodéstia, para a glória futura. Celebrávamos
principalmente as datas cívicas, o que me deixava envaidecido, pois meu avô
materno, José Antônio da Silva Castro, foi um dos heróis da independência da
Bahia, que só foi conquistada em 2 de Julho de 1823. É que em muitas
províncias, como o Senhor sabe, os portugueses não acataram a proclamação do
Sete de Setembro e queriam nos manter atados à Coroa lusitana. Na Bahia, meu
avô ajudou a derrotar as tropas inimigas, para assim confirmar a
independência do Brasil. Ele foi condecorado por bravura no comando de um
batalhão de voluntários, por ele mesmo criado. Vou lhe contar uma coisa que
pouca gente sabe: foi nesse batalhão que, sob suas ordens, lutou a heroína
baiana Maria Quitéria. Ainda vou escrever um poema em homenagem a essa grande
mulher.
Como o Senhor vê
a poesia nesta segunda metade do séc. XIX?
Olhe bem. A poesia na terra dos
Andradas, dos Pedros Ivos, e dos Tiradentes deve ser majestosa como as matas
virgens da América; arrojada como seus rios gigantes; livre como os ventos
que passam gementes por suas várzeas, e que zurzem os costados pedregosos dos
seus gigantes de granito. A poesia enfim deve ser o reflexo desta terra. Isto
no que toca à natureza, é claro.
No que toca às idéias desta metade
de século, eu diria que a poesia deve ser o arauto da liberdade - esse verbo
na redenção moderna - e o brado ardente contra os usurpadores dos direitos do
povo.
Quanto a sua forma, a literatura,
sendo a expressão da humanidade, libertou-se dos preceitos asfixiadores da
escola clássica - essa jaula do pensamento - assim como a humanidade
despedaçara o feudalismo - essa jaula da dignidade popular.
O povo - esse condor gigante -
sacudindo as longas asas pairou na ordem social por sobre a realeza, na ordem
científica por sobre a autoridade. O espírito popular tem sido iluminado
pelos luzires do cometa da civilização.
Tudo tende a idealizar-se. No
entanto, lanço uma censura a dois erros, que em geral permanecem em nossa
literatura, e neles eu sei que a minha poesia não está:
Um - a falta de
brasileirismo nas composições. O segundo erro, que ainda lavra, especialmente
na Bahia, é o classicismo. Deus me livre de maldizer das obras-primas que a
antiguidade nos legou. Não. Homero, Dante, Virgílio e outros hão de ser
sempre admirados. Mas não queirais, homens da atualidade, mandar, como primor
de escultura, uma cabeça de esfinge para a Exposição, nem apresentar nos
banquetes de Napoleão III a paródia dos vasos soterrados de Pompéia... passou
esse tempo... A poesia hoje é Byron, Barthélemy, Lamartine, Victor Hugo -
esses Cristos humanos.
De que forma o
Senhor situa a sua obra dentro deste contexto?
É muito difícil a um poeta situar
sua própria obra no contexto de uma literatura. Talvez possa dizer que segui
um caminho que é normal a todo escritor: o de fazer com que a vida e a obra
entrem em acordo e possam viver bem juntas.
Olhe bem. Hoje, a palavra da
poesia, além de ser íntima, também deve ser cívica. Tenho o sangue militar do
meu avô e cheguei até a me alistar no Batalhão Acadêmico de Voluntários que
foi à Guerra do Paraguai, mas nunca fui um apologista da guerra. Amo sim a
minha pátria, luto pela abolição da escravidão, canto os feitos heróicos, as
batalhas vitoriosas contra a opressão e confesso o meu amor em tom vibrante; só
em louvor ao Dois de Julho escrevi cinco poemas. Muitos dizem que minha obra
está composta de uma parte política e de uma parte lírica. Penso que vigora
sempre o mesmo amor à humanidade, sob roupagens diversas: amor coletivo e
amor pessoal, e não saberia dizer qual o mais importante.
Acho que o poeta deve falar aos
corações. Eu falo. Mas, não é com sussurros que se incendeia o público; é com
entusiasmo, dramaticidade, retórica. O poeta é às vezes um corcel sem
freios... Eu tenho consciência de que faço alguns poemas para voz alta, e não
para leitura com um chá, no aconchego das cadeiras de balanço. Algumas vezes,
anoto ao lado do texto: “Não se publica”. Não sei se será publicado, pois
tenho a certeza de que o poeta, quando muito, é o dono dos versos, mas não é
nunca o dono do destino do poema.
Particularmente,
acho exagerado o gosto pelo doentio que os poetas da geração anterior a minha
desenvolveram. Eles estavam voltados para eles mesmos, amavam a musa
distante, idealizada, intocada e etérea. A minha amada é de carne e osso (o
poeta sorri). Eu aposto no amor, na vida; às vezes perco, às vezes ganho...
Deixo aos críticos do futuro o julgamento do meu trabalho.
Que figuras
exerceram influência na sua formação de escritor?
Tudo o que o
escritor vê, vive ou lê o influencia. Assim, sou filho de Horácio, de Byron,
Barthélemy, Lamartine, Musset, do grande Hugo principalmente... Aprecio
Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo e Junqueira Freire, mas se tivesse que
escolher apenas dois brasileiros, citaria dos contemporâneos, meu amigo
Fagundes Varela e dos passados, o Casimiro de Abreu.
O Senhor está
começando a ser chamado “O poeta dos escravos”. Como se sente?
Eu me orgulho do epíteto. Estou,
inclusive, na fase final de negociações para a impressão de meu livro Os escravos,
que até o final do ano será publicado. A escravidão é uma das mazelas, talvez
a mais horrenda, que devemos combater em prol da liberdade. É certo que,
desde 1850, instituíram-se pesadas penas para o tráfico negreiro, já abolido
pela legislatura de 31, mas ainda vigente. Há dois anos foi proibida a venda
de seres humanos em pregão público e até o fim deste ano - não sei se o
Senhor sabe - será votada a Lei do Ventre Livre. Mas é pouco. Muito pouco.
Sempre fui
devotado às causas sociais. Fundei, com Rui Barbosa - meu antigo colega do
Ginásio Baiano - e outros alunos da Faculdade de Direito, a Sociedade
Abolicionista do Recife. Esse pendor abolicionista vem do berço. Lembro de
papai a reclamar, sempre, do tratamento cruel que era dado ao negro. O amor que
eu tive e tenho pela minha bá, que já se foi, a negra Leopoldina, minha ama
de leite, minha segunda mãe, a me contar as histórias de senzalas, mucamas e
amores proibidos... O meu tio, o alferes João José, herói da Guerra do
Paraguai, brincando comigo de cavalinho, montado em seus joelhos, dizendo-me:
“A liberdade, filho, é o maior bem do mundo”. Ah! Como essas coisas ainda me
comovem...
Ser chamado de
“poeta dos escravos” é uma honra. Acho, porém, que não diz tudo; sempre quis
ser “O poeta da Liberdade”. E para mim, Abolição e República são palavras
quase irmãs: uma puxa a outra, naturalmente. Tanto que, em paralelo à minha
luta pela libertação dos escravos, participei também de alguns comícios
republicanos. Lembro-me bem de um deles, dissolvido pela polícia, quando
criei de improviso os versos de “O povo ao poder” (nesse momento o poeta abre
um sorriso e levanta-se, com esforço, da cadeira de balanço austríaca). A
segunda estrofe desse poema começa com dois versos que agitaram a multidão,
aos gritos e assobios (o poeta de pé, com a voz já rouca e entrecortada por
um pigarro renitente):
A praça! A praça é do povo
Como o céu é do condor
É o antro onde a liberdade
Cria águias em seu calor.
Senhor!... pois quereis a praça?
Desgraçada a populaça
Só tem a rua de seu...
(um acesso de tosse interrompe a
fala; ele se senta novamente, e com dificuldade termina a estrofe)
Ninguém vos rouba os castelos
Tendes palácios tão belos...
Deixai a terra ao Anteu.
Desculpe-me,
Senhor... Desculpe-me... (aparentemente refeito) Prossiga, prossiga...
Além dos comícios
republicanos e da campanha abolicionista, é sabido que o Senhor tem
participado de debates sobre a liberdade de imprensa e de muitos outros
movimentos civis, como a luta pelo voto feminino. Por outro lado, as
discussões literárias também não foram poucas. Fale-nos sobre sua polêmica
com o poeta Tobias Barreto.
O Tobias? Isso é coisa do passado,
não tem mais importância... Nem sei se vale a pena voltar ao assunto. Mas o
que posso dizer?... Vamos ver...
Começamos como
amigos - temos, inclusive, poesias dedicadas um ao outro; passamos a colegas,
tornamo-nos rivais e acabamos inimigos. Intrigas pessoais e literárias.
Discordamos em quase tudo, tanto na poesia quanto no teatro. Olhe que nossos
desencontros se acaloraram a partir de 66, quando ele teve o desplante de, em
público, dizer que a atriz Adelaide Amaral era superior a minha amada D.
Eugênia Câmara, um talento fulgurante que Portugal nos legou; inigualável,
como o Brasil jamais tivera oportunidade de assistir.
O Senhor Tobias
Barreto é feio, velho, escreve mal e declama pior ainda. Não conhece a língua
que fala, o significado das palavras; já o aconselhei a fazer, de quando em
quando, uma viagenzinha ao Morais. Nos recitativos fica nervoso, tem um jeito
desastrado, não controla a voz. Não possui o domínio cênico que eu tenho, se
veste mal. Eu entro no palco vestido de negro, chique, com uma flor na
lapela, óleo nos cabelos, madeixas minuciosamente espontâneas e pó-de-arroz
no rosto, para parecer mais pálido. Começo logo com uma das minhas bombas “O
século”, “Pedro Ivo”, “Visão dos mortos”..., com resultado previsto e certo:
a platéia me ovaciona. Lembro-me de um sarau em São Paulo , organizado pelo
Arquivo Jurídico, no Salão Concórdia. Nessa noite todas as honras foram minhas;
o entusiasmo tocou ao delírio, quando arrematei a última estrofe de “Visão
dos mortos” e, a pedido geral, encetei “O livro e a América”. Se algum dia
obtive um triunfo, não foi noutro lugar. Até a senhora do cônsul inglês
Richard Burton veio entusiasticamente dizer-me: “Mim gostar muito de sua
recitativa” (rindo e imitando um sotaque inglês).
Atualmente não
tenho mais debatido com o Tobias Barreto. Como o Senhor sabe, pouco tenho
saído de casa. A minha última declamação em público foi, se a memória não me
falha, em 10 de fevereiro deste ano, no salão nobre da Associação Comercial
da Bahia, quando se realizava ali um meeting em favor das famílias francesas
sacrificadas pela guerra franco-prussiana. Eu recitei o poema “No meeting du
Comité du Pain”, escrito no dia anterior. Fiz especialmente para a ocasião.
Aproveitando a
sua lembrança, o Senhor poderia nos falar da grande atriz D. Eugênia Câmara?
A minha admiração
pela atriz D. Eugênia Câmara se confundiu com meu amor pela mulher Eugênia.
Quando a vi pela primeira vez, no palco do Teatro Santa Isabel, no Recife, eu
tinha 16 anos e ela 26. De minha parte, amor à primeira vista. Ela era a
estrela do drama Dalila, de Octave Feuillet. Difícil descrever o impacto que
a presença dela exerceu sobre mim. Digo apenas que ela foi a mulher mais
importante da minha vida, a musa celeste que me arrastou, como um turbilhão,
ao mais profundo fundo dos cafundós do inferno. E ainda mais, o que muitos
não sabem: é poetisa. Já tem dois livros publicados.
Escrevi para ela o drama Gonzaga ou
A Revolução de Minas, onde falo de liberdade, escravidão, traição, paixões...
em suma, de tudo que atormentava ou deliciava minha existência, e se
confundia com a própria Eugênia, para quem, é evidente, eu havia reservado o
papel principal. Meu sonho era vê-la em cena interpretando meu texto.
O nosso amor foi
sempre tumultuado. Em 66, após um longo período de indecisões e recuos, que
nunca soube se eram meus ou dela, finalmente consegui arrancá-la do
empresário com quem vivia, e levei-a junto com a filha, para morar comigo num
subúrbio do Recife. Nosso ninho de amor... Dediquei-lhe muitos poemas... Ah!
Bons tempos aqueles...
No ano seguinte,
fui para a Bahia, levando minha mulher e uma certeza: iríamos conseguir
encenar o Gonzaga em Salvador. O que, de fato, aconteceu no dia 7 de
setembro, no Teatro São João, tendo à frente do elenco Eugênia no papel de
Maria, a Marília de Dirceu. Foi uma brilhatura como há poucas! Fui chamado à
cena depois de cada ato, sob estrondosa ovação. Não satisfeita, a multidão
carregou-me em triunfo, sobre os ombros, até minha casa. Tive um triunfo como
não consta que alguém tivesse na Bahia. Era a glória, mas era a glória
baiana. Até aí a alegria do sucesso e o amor de Eugênia me completavam, mas
eu queria a consagração nacional...
Foi por isso que
o Senhor resolveu ir para São Paulo?
Sim, sim. Foi com
essa intenção que decidi continuar os estudos de Direito em São Paulo ,
interrompidos quando viemos para Salvador. Eugênia foi comigo. Incluí no
roteiro de viagem uma visita ao Rio de Janeiro, onde conheci o grande
escritor José de Alencar. Chegamos a São Paulo em março de 68, a terra de
Azevedo, cidade das névoas e mantilhas, ainda acanhada e provinciana, onde
não há senão frio, mas frio da Sibéria; cinismo, mas cinismo da Alemanha, um
tédio infinito. Entretanto prefiro São Paulo ao Recife, apesar das péssimas
recordações daquele tempo, pois foi lá que o nosso amor chegou ao fim. O meu
objetivo era terminar os estudos na Faculdade do Largo de São Francisco e o
de D. Eugênia retornar aos palcos. No início retomamos a vida intelectual e
boêmia, freqüentando saraus e salões, sempre com muito sucesso. Porém,
rapidamente, o nosso relacionamento se deteriorou. Eram cada vez mais
constantes as nossas desavenças. Cenas violentas, ciúmes, brigas, precárias
reconciliações. Sopravam-me histórias de adultério. No entanto, sei que ela
me amou, como sei que, talvez, meu amor tenha sido insuficiente para sua
paixão. Não a recrimino. Em determinado momento, largou a carreira para me
seguir. Depois, me largou para seguir a si própria. Rompemos em 68 e a última
vez que a vi foi no ano seguinte apresentando-se no Teatro Fênix Dramática,
no Rio de Janeiro, quando pude lhe oferecer meus derradeiros aplausos.
Despedi-me de Eugênia com a poesia “Adeus”, que termina assim (acomodando-se
na cadeira):
Quis te odiar, não pude. - Quis na
Terra
Encontrar outro amor. - Foi-me
impossível.
Então bendisse a Deus que no meu
peito
Pôs o germe cruel de um mal
terrível.
Sinto que vou morrer! Posso,
portanto,
A verdade dizer-te santa e nua:
Não quero mais teu amor! Porém
minh'alma
Aqui, além, mais longe, é sempre
tua.
E Eugênia me respondeu com uma
outra e que sei de cor. Vou dizer-lhe a primeira e a derradeira das 14
estrofes (a voz um pouco mais baixa):
Adeus, irmão desta alma, digo-te
Adeus!
Mas deixa que eu evite esse -
jamais! -
Que o céu se compadeça aos rogos
meus
E um dia cessarão teus e meus ais!
Adeus! Se um dia o Destino
Nos fizer ainda encontrar
Como irmã ou como amante
Sempre! Sempre me
hás de achar.
Como foi seu
contato com José de Alencar?
Ah! Esse foi um
dia inesquecível: 17 de fevereiro de 1868. Levei uma carta de apresentação do
estadista baiano Dr. Joaquim Fernandes da Cunha, amigo de meu pai e padrinho
da minha irmã Amélia. Visitei Alencar no Rio, como já lhe disse. Ele residia
lá nos cerros da Tijuca. Segundo suas palavras, lugar puro e são, montanha
encantadora que a natureza colocou a duas léguas da Corte, como um ninho para
as almas cansadas de pousar no chão. E foi lá que o primeiro literato
brasileiro provou-me que a ninguém cedia em cavalheirismo e urbanidade.
Sabendo que
tocava numa corda sensível do mestre, além de declamar alguns poemas, li para
ele o Gonzaga. Meu anfitrião era um obcecado pela construção de um teatro
brasileiro, mesmo tendo fracassado na tentativa. Ele pregava um teatro
baseado em nossa História - exatamente o que eu fizera, ao invocar em meu
drama a Inconfidência Mineira. A receptividade foi muito boa, a ponto de
Alencar recomendar-me a outro talento que se firmava na literatura
fluminense: o jovem Machado de Assis, que me visitou no domingo de carnaval.
O resultado desses encontros se traduziu nas crônicas publicadas no Correio
Mercantil, a de Alencar em 22 de fevereiro e a de Machado em 1o de março,
ambas muito favoráveis ao Gonzaga. Saiba que ainda guardo comigo esses
exemplares do Correio.
Quando e por que
o Senhor decidiu deixar o sul do país e retornar à Bahia?
Devido a meus
problemas de saúde; não ia nada bem. Quando me separei de Eugênia, a minha
sorte piorou. Não sai da minha mente o fatídico dia 11 de novembro de 68, em
que para espairecer minha solidão dirigi-me ao Brás, onde costumava caçar;
era um mato cerrado, animais em abundância. Fui saltar uma pequena valeta e
um disparo da espingarda atingiu-me o pé. Como todos sabem, surgiram
complicações no ferimento e os antigos padecimentos pulmonares acordavam,
impressionantes. Então busquei ajuda médica no Rio de Janeiro e o diagnóstico
foi implacável: teria que amputar a perna esquerda no seu terço inferior. Devido
ao meu estado debilitado, a intervenção cirúrgica se daria sem anestesia,
pois a cloroformização seria perigosa. Se não operasse poderia morrer; então
reuni todas as minhas forças e dei a autorização aos médicos, em tom de
blague, disfarçando sob o riso, a dor física e moral da mutilação que deveras
sentia. Ainda lembro de minhas palavras: “Corte-o, corte-o doutor... ficarei
com menos matéria que o resto da humanidade”.
A convalescença
foi demorada, agravada pela tísica renitente. Após alguns meses consegui
levantar-me com a ajuda de um pé de madeira e apoiado em muletas. Porém , não
me entreguei ao infortúnio. Nesse período de recuperação, estive hospedado na
casa de meu grande amigo Luís Cornélio, cercado de carinho e atenção. Não
deixei de escrever e recitar meus poemas para o pessoal da casa e para as
bonitas moças que me visitavam e inspiravam. É... Não foram tão maus aqueles
tempos (risos). No entanto, os meus pulmões não iam nada bem; acessos de
tosse e febre deixavam-me constrangido. A saudade da minha pátria e a
necessidade de cura em outro ambiente me fizeram retornar ao aconchego da
família. Em novembro de 69, deixei o Rio de Janeiro. A travessia, transposta
a enseada maravilhosa da Guanabara, sugeriu-me, com a saudade e o desengano,
a idéia de reunir os meus poemas num volume que denominei Espumas flutuantes.
Os meus versos eram as espumas que se formavam, flutuando à volta do navio.
Essa lembrança está relatada no Prólogo do meu livro.
Quais são seus
planos para o futuro?
Como já lhe
disse, estou com Os escravos pronto, deve sair até o final do ano ou, no
máximo, no princípio do ano que vem. A cachoeira de Paulo Afonso, livro de
poemas, também já está acabado. E quero publicar o texto do meu Gonzaga, que
já viajou por todo o Brasil, e, como o Senhor sabe, com grande sucesso de
público e de crítica. Infelizmente nos últimos tempos não tenho trabalhado
muito, a minha saúde não anda boa, e os médicos e as manas não querem que eu
faça esforço. Para dar-lhe esta entrevista, tive que impor a minha autoridade
de irmão mais velho (risos). Mas Deus vai me dar ânimo, pois tenho planos de
voltar a declamar em público, no máximo daqui a um mês. Já encomendei até um
novo terno preto, bem cortado, pois estou um pouco mais magro e quero me
apresentar bem. Se Deus quiser.
NOTA: O poeta Castro Alves faleceu às
15h30min do dia 6 de julho de 1871, um mês após esta entrevista.
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