SONHOS
Nando da Costa Lima
Marilda e Marlúcia eram irmãs e faziam de tudo para os maridos se darem
bem. Viviam se visitando, mas não tinha acordo. Os dois brigavam desde o tempo
do colégio. Marculino era gozador, e Crispiniano, “ferrado”. Naquela noite, as
irmãs estavam decididas a por fim naquela briga idiota. Até eles estavam bem-intencionados...
E foi Crispiniano que puxou prosa:
— Já imaginou,
Marculino! Você sentando numa cadeira de balanço, num casarão colonial, se
deliciando com o doce de queijo em calda de Araxá, escutando Milton Nascimento
em vinil, e tendo como fundo as montanhas de Minas ecoando o aboio de um
vaqueiro trazendo a boiada e avisando à amada que está chegando... Isso pra mim
é um pedaço do Céu!
— O compadre Crispiniano
tá inspirado hoje, só faltou uma locomotiva! Quando você falou eu cheguei a
sentir o gosto do doce de Araxá. Deu pra ver que você gosta mesmo de Minas. Eu
também gosto, sou um grande apreciador da “Catira Mineira”. O bom da catira é
que é fácil de dançar, basta ter um par de botas, sapatear e bater palmas.
Aí começou o bate-boca...
— Eu sempre achei que
você fosse meio “passado”. Estou falando de um sonho poético e você vem com
“Catira Mineira”. Essa dança é tão sem graça que só quem participa é velho e
menino, e só quem assiste às apresentações são os parentes. Eu gosto muito da
música, da poesia e da comida dos mineiros. Mas em se tratando de dança, não
tem como. A Catira é dançada em todo o estado. Ô coisa esquisita! Eles colocam
as calças por dentro das botas e fica um grupo de frente pro outro sapateando e
disputando passinho. É triste! Mas vamos deixar isso pra lá e falar do que
importa. Esse sonho eu tenho desde menino, se fosse espírita iria achar que é a
tal da reencarnação, mas como eu sou da igreja...
— E se for reencarnação
mesmo, compadre? Eu conheço muita gente séria que acredita. Será que em vidas
passadas o compadre não foi Dona Beija?
— Espera aí, Marculino.
Eu estou revelando um sonho que tenho desde criança e você vem com essa
esculhambação. Tá me achando com cara de quê?
— Mas compadre, eu não
quis ofender. É que parece que no espiritismo o homem pode reencarnar como
mulher e vice-versa. Isto é, eu acho!
— E por que você foi
escolher logo Dona Beija? Por que não Tiradentes?
— É porque esse sonho
que você me contou parece sonho de mulher. Esse negócio de ficar sentado em
cadeira de balanço, comendo doce e escutando aboio de vaqueiro. Sei não... Tiradentes não tinha tempo pra isso.
— Se não fosse por
minha cunhada eu te enchia de porrada, seu sacana.
— Para de violência,
compadre. Eu e Marilda viemos aqui pra gente se acertar e parar com essas
implicâncias. Além do mais, Dona Beija foi uma grande mulher, tanto é que faz
parte da História.
— Marculino, se você
continuar insistindo nessa prosa eu vou acabar pedindo pra você parar de me
chamar de compadre. Onde já se viu, Dona Beija... E se essa prosa ruim cai na
boca dos filhos da puta? Eu vou logo lhe avisando, se você for com essa
conversa de Dona Beija pro meio da rua, eu não respondo por mim.
— Calma, compadre. O
senhor embananou tudo, eu tava querendo elogiar o senhor...
— Me elogie com o meu
nome, Crispiniano da Silva! Dona Beija é o rabo da...
— Pera aí, compadre.
Calma, essa conversa vai morrer aqui. Eu pensei que o senhor fosse compreender,
mas você é limitado!
— Limitado é o cú do...
— O que é que meu pai
tem com isso? É melhor o compadre parar com essas ofensas e me contar o fim do
sonho.
— Eu não vou contar
merda nenhuma. Você só dá palpite errado, parece que tem inveja do meu sonho.
— É isso, compadre,
deve ser inveja. Já pensou o senhor sentado numa cadeira de balanço, comendo
doce e esperando o vaqueiro?!
— Marculino, Marculino.
Cê tá pensando que o inferno é longe?
— Ué, compadre. Todo
homem sonha, e como disse o poeta“os sonhos não envelhecem”. E o doce, a
cadeira de balanço e o vaqueiro estavam no seu sonho...
Aí Crispiniano acabou metendo a mão na cara do compadre.
Quebraram a casa quase toda, eram dois homens fortes! E desse dia em diante,
nunca mais se falaram. As próprias esposas desistiram!
Marculino já morreu faz tempo. Crispiniano continua vivo e, na cidade, se
alguém por ele perguntar, ninguém sabe quem é!Após aquele “quebra-pau” ocorrido
há quarenta anos, o pessoal da cidade só conhece “Seu Beija”. No início, chamavam
de Dona Beija, mas depois de ele quebrar uns dez na porrada, mudaram pra Seu
Beija. Ele se acostumou com o apelido e até hoje gosta de contar a origem nos
almoços com a família... Todo mundo conhece a história decorada. Eu acho que
isso acontece com toda família, sempre tem uma história de algum parente que
será lembrada toda vez que a família se reúne. E quanto mais o tempo passa,
mais diminuem os ouvintes, e mais a gente aumenta o causo. A saudade sempre
aparece.
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