“PILÉRA”
Nando da Costa Lima
Apesar
da idade avançada, Dona Epistolina era lúcida e podia se locomover com
facilidade. Só não podia beber bebida quente. A única bebida que ela ainda
podia degustar era a Jurubeba Leão do Norte, ela até relacionava sua vitalidade
com o melhor vinho composto do mundo. Mas quando tomava cachaça, ficava
insuportável, ficava tão escrachada que foi o jeito parar. Tinha mais de
quarenta anos que não bebia. Mas não é todo dia que se faz 90 anos, e essa data
tinha que ser comemorada na fazenda preferida da matriarca, a “Três Cancelas”.
Ela tinha mais energia que muita mulher jovem, não parava num canto! Não
precisava de ajuda pra nada, só não gostava de dirigir. Mas isto não era
problema: como era muito rica, sempre tinha uma cambada de netos e afilhados
pra lhe acompanhar. Ficava viajando de uma fazenda pra outra, tinha várias! Mas
a preferida era a Três Cancelas, ali foi o palco de grandes festas: São João,
batizados, casamentos, etc. Na família tinha de tudo: cantor, ator, jogador de
futebol, jogador de baralho, médico, pastor, político, padre… Tinha até um
artista plástico famoso que ia presentear a madrinha com um quadro de nu
artístico. E foi esse presente o responsável pelo mal entendido entre Dona
Epistolina e suas filhas, netas, afilhados e convidados.
A
matriarca teve uma recaída e fundou na pinga, já tava empurrando o jipe. Falou
o que devia e o que não devia, rasgou o verbo. Tudo começou quando o afilhado
pintor tirou o pano que cobria a obra de arte. Dona Epistolina colocou a mão na
cabeça e falou pro afilhado artista:
— Meu filho, sua pintura me fez
lembrar do jegue Piléra.
Os
mais velhos tentaram evitar que Epistolina entrasse em mais detalhes da vida de
Piléra, aquilo não pegava bem num almoço festivo. Mas não teve jeito, ela já
estava de pé na cabeceira da mesa quilométrica. Tinha que ser assim pra caber
tanta gente. A velha aumentava o volume da voz quando bebia, parecia que tava
com um megafone. Uma das filhas fez um sinal pra ela maneirar, foi aí que ela
ficou retada. Mandou a filha “se assuntar”, sentar o rabo gordo na cadeira e
ficar calada. Ela não queria ser interrompida enquanto falava, e ameaçou:
— Se vocês não deixarem eu contar a
história do Piléra, eu vou contar a história do Javanês que tinha um bar na
Moranga - e deu um suspiro! (Essa era a história que a família mais temia).
Depois
da ameaça, ninguém mais tentou interromper, e Dona Epistolina continuou a
história.
— O jegue tem esse apelido porque
uma vez um senhor de São Paulo, de passagem pela cidade, quando viu o jumento
excitado correndo atrás de uma égua, não acreditou. Ficou abismado. Abriu os
braços como se estivesse medindo e falou: “Deve ser pilhéria”. Aí o povo que
tava em volta aproveitou e colocou esse nome no jegue “Piléra”. “Pilhéria” é
coisa de paulista. Ele reinou absoluto nos mangueiros e ruas da cidade, ficou
famoso por seu apetite sexual. E por ter um defeito na pata, não servia pro
trabalho, mas todos sabiam de suas histórias. Nesse tempo, os jegues ainda eram
usados pra transportar água potável do Poço Escuro, a água vinha com carotes.
Tinham também os feirantes que se locomoviam e transportavam sua produção em
jegues, usavam cangalhas. E isso não tem muito tempo não - continuou Dona
Epistolina da “Três Cancelas”.
As filhas e netas
ainda tentaram interromper mais uma vez:
— Aí tá bom, vovó. Para com esse
negócio de jumento, conta outra história….
Então a velha
fechou a cara, virou outra cachaça e deu uma bronca conjunta em quem estava na
festa:
— Eu vou contar a história que eu
quiser. Estou na minha casa, os incomodados que se retirem.
Aí
ficou todo mundo quieto, escutando a história do famoso jumento.
— Piléra ficou famoso porque era
muito bem dotado, pode até ser que aquele defeito na pata tenha ajudado na
lenda, parecia que o bicho tinha cinco patas! Quando tinha feira ele aprontava,
já derrubou muita barraca perseguindo as éguas usadas pelos feirantes. Só
parava quando alcançava seu objetivo. A prefeitura até tentou evitar esses
incidentes prendendo Piléra no mangueirinho de Dona Zezé quando era dia de
feira. Mesmo assim, ele sempre dava um jeito de escapulir pra ir atrás da tropa
de feirantes. A meninada gostava de ver Piléra em ação, acho que era por isso
que ele sempre fugia do mangueiro.
A
velha insistiu com a história do jegue e o povo que tava na mesa não podia
falar nada. Só um padre se levantou e saiu resmungando, já conhecia a história
do jumento indecente.
— Tinha gente que falava que o jegue
era encantado e que pertencia à velha da Rua do Gancho. Teve dois amigos que
viram Piléra voando com a velha na garupa. Nisso eu nunca acreditei. EU,
Epistolina da Três Cancela, juro que nunca vi essa assombração, é invenção dos
cachaceiros do Magassapo que mataram Piléra… Eles tiraram a vida do bicho por
causa de uma aposta. Os biriteiros fizeram uma lista pra ver quem acertava o
tamanho da ferramenta do famoso jumento. Muita gente da cidade arriscou um
palpite, a bolada tava boa. E foi isso que empurrou o jegue pra morte: como
ninguém quis medir Piléra vivo, tiveram que abater o animal, coitadinho.
Acabou
de falar e caiu num choro profundo… A filha mais velha recriminou a mãe:
— Como é que a senhora tem coragem
de chorar a morte de um jumento? Isto é heresia!
— Não é por causa de Piléra não,
minha filha. É que eu me lembrei da minha juventude, e dos comícios e festas da
vida.
— E qual foi a relação da sua
juventude com um jumento? Tá parecendo uma velha despudorada, que coisa feia!
— Não fica enfezada comigo não,
minha filha. Quando eu contei a história do jegue, os pensamentos da minha
época de moça vieram todos de uma vez: festas, casamentos, Palmeira, comícios…
Ui, minha nossa senhora.
— E quem é esse Palmeira, mãe? Pelo
que eu sei, o nome de papai era Astrogildo.
— Deixa essa conversa pra lá,
Palmerinda, foi a cachaça que misturou tudo nos meus pensamentos. Apareceram
histórias que estavam escondidas no porão.
Quem
estava presente notou que o semblante de Dona Epistolinda era o de uma menina
de 20 anos. Viajou longe, foi no melhor lugar de sua vida ao se lembrar de uma
simples história. É claro que a cachaça deu uma força. Ninguém falou mais nada
naquele dia, foram todos embora com Piléra na cabeça. Só ficaram sabendo que o
ganhador da aposta morava na Rua do “Motô”. A filha não deixou a velha falar
nem a metragem, nem quem mediu.
Ao meu amigo “Pirigoso”
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