sábado, 14 de dezembro de 2019

NANDO DA COSTA LIMA - CONTO

Tocaiaram até o destino

Nando da Costa Lima
— Tu viu, cumade Deuzita?
— Vi o quê? Tá vendo assombração de dia?
— Não, é que eu vi o cauã cantando ainda agora, no pé da gameleira que secou depois que caiu um raio em cima… Passou por todas as três árvores, mas só cantou na gameleira seca. Isso é sinal ruim, tô toda arrepiada. Vou pegar um galho de arruda pra colocar na orelha. Sangue de Jesus tem poder, vamos rezar 13 credos de trás pra frente ajoelhadas numa mão de pilão.
— Pra quê essa mão de pilão, comadre?
— Tem que ter sacrifício. Dá força à oração!
— Larga de besteira, cumade. Deus não gosta dessas presepadas. Vamos orar em silêncio. Quem pensa no mal, atrai o pior.
Os jagunços só esperaram a Semana Santa acabar… Estavam em três, um trio que já tinha dado fim em tanta gente que dava pra encher um cemitério. Esse pessoal tinha por ofício eliminar o próximo, era um meio de vida como outro qualquer (segundo eles). O mais velho deles já não tinha mais onde colocar marca no cabo da “papo amarelo”: cada vida abatida era uma marca. Ele era um cabra de pouca conversa. Os outros dois eram bem mais novos, estavam naquela empreitada por já terem provado a competência em outros serviços. Eram ótimos atiradores. Era uma família! Eles estavam de tocaia desde cedo: o velho atrás de uma moita no lado direito; os outros ficaram do lado esquerdo, de frente pra curva. Não tinham como errar, era só ter paciência. Eles fizeram até uma aposta pra ver quem pegava o primeiro. Coisa de pistoleiro! Tinha que ser de “bate pronto”, a vítima tinha que cair da montaria já sem vida. Isso era como uma marca de um bom matador.
Foi na primeira semana depois da sexta-feira da paixão, o povoado fazia gosto… Tinha escola, água potável, correio, era uma belezura! Não tinha um menino fora da escola, e o coronel Napoleão Ferraz incentivava o povo a se instruir. Ele prezava o trabalho comunitário e criou cooperativas pra incentivar os pequenos proprietários. Um sujeito progressista e empreendedor que achava que só se crescia se o povo crescesse junto. E aí surgiram casas de farinha, criatórios de gado e de caprinos, tudo tendo o coronel como principal associado. Para um povoado baiano ter este nível de desenvolvimento, só com um dirigente que apostasse no trabalho coletivo. E foi com estes benefícios sociais, incluindo o trabalhador rural no mercado como cidadão, coisas que os coronéis da época jamais incentivariam. O coronel Napoleão Ferraz, naquela época, sabia que a educação era a base de tudo. O povoado já respirava o ar do progresso, e ele, sentindo isso, passou a incentivar os festejos populares, sabia que aquilo era cultura. O coronel era respeitado não só em Belo Campo, e conseguiu esse respeito sem o uso de armas, tão natural pra época. Os coronéis mais respeitados eram os que tinham maior poder de fogo, mas o coronel Napoleão desprezava isso. Sua visão humanista não permitia manter um bando de jagunços.
O jeito do Coronel de Belo Campo conduzir as coisas já estava incomodando os outros coronéis das redondezas. Não podiam deixar que ele dominasse as massas apenas com ideias práticas, aquilo era um perigo! Querer igualar as pessoas, para os coronéis, não era coisa de gente. E a cada investida em benefício do povo, ele atacava os pontos principais: fome, educação, moradia, etc. Quanto mais aumentava a sua popularidade, mais os coronéis ficavam irritados. Estavam pra estourar… Em todo canto só se falava do Coronel de Belo Campo, até na capital do estado! E quando Napoleão foi condecorado pelo governo federal como chefe dos coronéis do Sertão da Ressaca, foi o estopim. O governo, sem querer, jogou pedra no vespeiro que ficava na passagem do coronel. Se fosse para eles terem “chefe” algum dia, eles mesmos escolheriam. Nunca iriam admitir uma ordem que não fosse vinda do governador. Abaixo do governo do estado, só eles! Jamais aceitariam ordens do Coronel de Belo Campo, mesmo este sendo contemplado pelo governo federal. Era a inveja falando alto.
Dona Edeuzita tava catando andu na porta de casa quando apareceu um sujeito e puxou conversa:
— Boa tarde, dona. A senhora mora aqui há muito tempo?
— Não, senhor. Vai fazer um ano que estou aqui, vim quando soube do Coronel do Povo, o homem que criou este povoado e tudo de bom que tem nele.
— Esse homem então deve ser muito respeitado. Ele já é velho?
— Não, o coronel Napoleão ainda tá novo, o bigodão ainda não tem um fio de cabelo branco. É um anjo de Deus.
— Mas só por isso a senhora acha que o homem vai virar santo?
— O senhor devia calar a boca e escutar sem interromper. Deixa eu contar só um pedaço da vida dele que o senhor vai tirar o chapéu e me dar razão. Este homem fez de tudo… escola, cemitério, correio, estrada pra Conquista. Pro senhor ter uma ideia, aqui ninguém mora de aluguel. Tudo planejado por ele.
— Quer dizer então que esse homem, do nada, fez uma cidade com gente e tudo? Tem polícia também?
— Ô, menino. Eu tô achando que você tá mangando de mim. Eu tô fazendo um favor e você ainda vem com essas gracinhas. É melhor parar. Deixa eu terminar de catar meu andu que a freguesia tá chegando.
— Calma, Dona Edeuzita. Me desculpe. É que fui criado solto no mundo e às vezes me comporto mal, mas não é por vontade minha. A senhora, que é uma mulher mais escolada, vai saber perdoar este peão analfabeto que só está de passagem por esse lugar bonito. Por favor, termine de contar a história do coroné.
— O coroné fez tudo que prometeu. Tudo no povoado está correndo bem, a alegria se nota na cara dos moradores, tá todo mundo alegre e confiante. Mas agora fui eu quem ficou curiosa: tem mais de uma hora que o senhor tá aqui e nem perguntou o preço do andu… Só fez perguntas. Eu vou logo avisando, o povo daqui é ordeiro, mas é brabo. Se o senhor estiver mal intencionado, é melhor pegar a estrada. Quem muito pergunta é porque está querendo alguma coisa.
— Não é nada disso, eu sou um simples viajante. Meu tempo aqui é curto, já estou com o pé na estrada. Depois de hoje, a senhora nunca mais vai me ver.
Dona Edeuzita ficou encafifada com aquela prosa o dia todo, chegou a ficar arrepiada. Aquele homem, apesar de simpático, tinha jeito de quem não valia nada. Ficou ainda mais impressionada depois que soube da notícia, ainda comentou com Salú do Mingau:
— Tem uns três dias que passou um homem na frente lá de casa que quis saber tudo sobre o coronel Napoleão. Eu pensei que fosse gente da capital… Agora sei que não era. Aquele perguntador safado com os “ói” de bode na taca deve ter sido o pé de tôco que matou o coroné e o irmão. Miserável, um homem até bonito. Ainda bem que eu não dei ousadia… Agora deve tá longe.
E em seguida falou: “Cala-te boca”.
Do lado esquerdo da estrada, um dos cabras aprumou a mira no sujeito que vinha do lado direito e desceu o dedo. Deu cinco tiros certeiros, queria impressionar o velho jagunço. Este, que estava mais distante, precisou dar só dois tiros pra derrubar o irmão do coroné. Nem reclamou com o novato por ter disparado tanto tiro, deixou pra lá. O serviço tinha sido limpo: no meio de tanta gente, só pegaram os alvos! Ademais, quando tinha a idade dele já havia descarregado muita repetição em encomenda, fazia até aposta pra ver quem furava mais o defunto. Chegou até a puxar conversa, o que não era normal… Ele perguntou pro rapaz que disparou os cinco tiros como é que ele sabia que tinha atirado no coroné. O rapaz falou que uns dias antes da tocaia, ele foi no povoado e conversou com uma velha que vendia andu. Foi ela quem falou que o coronel tinha o bigode grosso…
E desceram em silêncio, na direção do Verruga.

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