EXCELENTE TEXTO.
CONCORDO LITERALMENTE!!!
A DECADÊNCIA DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
Todas as grandes línguas de cultura têm academias de Letras. As primeiras, como a Academia Francesa e a Real Academia
Espanhola, surgiram ainda nos séculos XVII e XVIII, quando as línguas
nacionais começavam a se firmar como idiomas de prestígio e a fazer
frente ao até então todo-poderoso latim. A nossa Academia Brasileira de
Letras foi fundada em 1897 por iniciativa do grande mestre Machado de
Assis e de Lucio de Mendonça, e seu lema é ‘Ad Immortalitatem’, “Para a
Imortalidade”, donde seus membros serem conhecidos como “imortais”.
Desde
sua fundação, a Academia tem sido reconhecida de maneira inconteste
como a guardiã da língua portuguesa no Brasil e de sua literatura.
Embora seja uma instituição de cunho privado, ao contrário de outras
academias do gênero, sua influência penetra na esfera estatal, como, por
exemplo, por ocasião das reformas ortográficas de 1943 e 1990, que se
transformaram em leis. Na esteira da legislação sobre a ortografia,
coisa que a maioria das grandes línguas do mundo não tem, a ABL publica
também o VOLP — Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa.
Ilustres
literatos e pensadores brasileiros, bem como grandes cultores do idioma
pertencentes a outras áreas do saber, como médicos, professores,
juristas e jornalistas, pertenceram às suas fileiras, tais como Ruy
Barbosa, Olavo Bilac, Visconde de Taunay, Oswaldo Cruz, Clovis
Bevilacqua, Silvio Romero, José do Patrocinio, Joaquim Nabuco, Aloysio
Azevedo, Euclydes da Cunha, Laudelino Freire, Vianna Moog, Rachel de
Queiroz, Guimarães Rosa, Barbosa Lima Sobrinho, e muitos outros.
No
entanto, de tempos para cá, a Academia passou a acentuar uma prática
que já era algo costumeira desde seus primórdios: eleger membros que
pouco ou nada contribuíram para o enriquecimento do idioma e de sua
literatura, mas apenas exerciam influência política ou popular. Basta
dizer que até Getulio Vargas e Ivo Pitanguy foram imortais.
A
eleição de figuras pouco representativas em termos de língua vem desde
as origens: os fundadores da ABL decidiram escolher patronos para suas
cadeiras, coisa que não existia em outras academias mais antigas, e,
como apontou ainda em 1923 o acadêmico Afranio Peixoto num discurso na
própria Academia, muitos desses fundadores escolheram como seus patronos
nomes de qualidade literária duvidosa, como Adelino Fontoura e Pardal
Mallet.
Mais
recentemente, a ABL elegeu os ex-presidentes da república José Sarney,
autor de Marimbondos de fogo, grande monumento de nossas letras
(atenção: aqui há ironia), e Fernando Henrique Cardoso, autor da grande
obra literária chamada Plano Real (ironia novamente). A indicação de
Sarney deveu-se a Josué Montello, seu conterrâneo, que quis privilegiar —
ou garantir uma reserva de mercado — ao Estado do Maranhão. Já FHC
escreveu muitos textos acadêmicos (os quais ele posteriormente pediu que
fossem esquecidos), mas, a meu ver, nenhum que tenha lustro em termos
de apuro linguístico ou qualidade literária.
A
seguir, veio o controverso letrista, escritor, místico e ex-hippie
Paulo Coelho, aquele que não permite que os revisores corrijam seus
(muitos) erros gramaticais e ortográficos porque, segundo sua visão
místico-mercadológica, “Deus pode estar num erro de português”.
Então,
seguindo o (mau) exemplo da Academia Sueca, que resolveu conceder o
prêmio Nobel de literatura ao cantor e compositor americano Bob Dylan, a
ABL admitiu mais recentemente os letristas de MPB Geraldo Carneiro,
Antônio Cícero e Gilberto Gil, e também a atriz Fernanda Montenegro, o
cineasta Cacá Diegues e o jornalista e comentarista “global” Merval
Pereira, atual presidente da casa, que, à época de sua eleição, tinha
apenas dois livros publicados (hoje tem três), sendo um deles uma
coletânea de artigos e o outro uma série de reportagens feitas em
coautoria.
Não
nego o talento de alguns desses nomes ou o valor artístico de suas
obras. No entanto, é preciso fazer algumas considerações. Primeiramente,
se a Academia visa a contemplar perfis que muito contribuem ou
contribuíram para o engrandecimento do idioma e de sua produção
literária, então ela deveria agraciar os produtores de textos e não os
simples reprodutores, como é o caso da atriz Fernanda Montenegro, que
nunca escreveu uma linha em termos literários (seu único livro é uma
autobiografia) e apenas reproduziu oralmente nos palcos e estúdios os
textos de outrem.
O
segundo ponto é que a ABL é uma academia de Letras, portanto voltada à
linguagem verbal, sobretudo à escrita. Então, que sentido tem admitir
produtores de discursos musicais ou audiovisuais, em que a linguagem
verbal tem aspecto secundário e, por vezes, pouco importante? Em que
pese a qualidade dos versos de Gil, seu registro escrito se encontra
basicamente nos encartes de seus LPs e CDs (hoje em dia, com as
plataformas de streaming, as letras das canções sequer têm versão
escrita). Já Antônio Cícero teria sido eleito por versos como os de
‘Fullgas’? E por que Chico Buarque, nosso maior letrista e quem sabe
maior poeta, vencedor do prêmio Camões, não está na Academia? Por que
Monteiro Lobato, Carlos Drummond de Andrade, Cecilia Meirelles, Vinicius
de Moraes, Clarice Lispector, Érico Veríssimo e Mario Quintana nunca
estiveram?
Este
ano, o cartunista Mauricio de Sousa quase se tornou imortal; seria mais
um criador cujo foco não é a língua e sim uma linguagem visual (o
desenho) e cujos textos, voltados às crianças e vendidos em bancas de
jornais, são propositalmente simplórios (ou “simplólios”, como diria o
Cebolinha). Com todo o respeito ao brilhante cartunista, um de nossos
orgulhos nacionais, em boa hora a Academia preferiu Ricardo Cavaliere,
este sim um literato, estudioso e cultor do idioma, autor de relevantes
contribuições à língua portuguesa.
Se
o lema da Academia faz alusão à imortalidade, e se essa imortalidade é
sobretudo da obra e não de seu autor, por que se privilegiam autores de
obras descartáveis, como canções populares, filmes já datados ou
romances soníferos?
Não
há nenhum problema em que autores não ficcionistas, como cientistas,
filósofos, filólogos, linguistas, gramáticos, juristas e jornalistas,
façam parte da Academia, mas é preciso que tenham produzido obras de
relevo em termos linguísticos e/ou culturais, que tenham dado
contribuição significativa ao idioma. Entretanto, quer me parecer que o
atual critério de escolha dos novos membros é mais político ou
mercadológico do que de mérito acadêmico-cultural.
Com
isso, a Academia Brasileira de Letras reproduz o que é o próprio
Brasil: um país de privilégios, de pessoas “cordiais” (no sentido dado
por Sergio Buarque de Holanda), em que amizade e compadrio valem mais do
que conquistas pessoais e profissionais, enfim, um país pas sérieux. A
ABL é hoje uma triste sombra do que um dia foi — se é que foi.
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ALDO BIZZOCCHI
Doutor em Linguística pela USP e pesquisador do NEHiLP-USP. Site: www.aldobizzocchi.com.br
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