SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Os recursos bilionários do Sistema S
entraram na mira da procuradora-geral da República, Raquel Dodge. Ela
cobra transparência no uso do dinheiro público repassado às entidades.
O Sistema S é formado por nove organizações, entre elas Sesi, Sesc e
Sebrae. Fundadas a partir dos anos 1940, elas prestam serviços de
educação, cultura e treinamento de mão de obra.
No foco da PGR estão recursos de contribuições obrigatórias sobre
folha de pagamento instituídas por leis federais. Em 2018, a Receita
repassou às entidades R$ 17,1 bilhões.
O ministro Paulo Guedes (Economia) já disse que é preciso “meter a
faca” no Sistema S. Em maio, decreto do presidente Jair Bolsonaro
enquadrou as organizações na LAI (Lei de Acesso à Informação). A norma
entrou em vigor no início deste mês.
Ao STF (Supremo Tribunal Federal), Dodge defendeu que fiquem na
Justiça Federal eventuais casos de desvios de recursos no Sistema S. A
manifestação é de 7 de agosto.
Com a recomendação de Dodge, o MPF (Ministério Público Federal)
passaria a investigar crimes nas organizações. Hoje, Justiça comum e MPs
estaduais tratam desses casos.
Uma ação da CNT (Confederação Nacional do Transporte), ajuizada em
abril de 2016, pede que os casos criminais sejam julgados na Justiça
Federal. O STF ainda não decidiu sobre a ação.
“Tratando-se de recurso proveniente de tributo federal, o produto
decorrente da arrecadação de contribuição possui natureza de recurso
público federal, o que impõe a observância dos princípios da moralidade,
eficiência, economicidade, impessoalidade e publicidade”, escreveu
Dodge.
A procuradora-geral destacou que, embora esses princípios estejam na
Constituição de 1988, só em 2016 o TCU (Tribunal de Contas da União)
impôs ao Sistema S normas contábeis do setor público, após uma
auditoria.
A procuradora-geral propôs a revisão do entendimento do STF sobre a
competência da Justiça comum. A atual jurisprudência é dos anos 1960,
anterior à Constituição. Há divergências sobre o tema.
“Deve prevalecer a orientação jurisprudencial que fixa, como regra, a
competência da Justiça Federal para processar e julgar delitos
relacionados ao desvio ou à apropriação de verbas em detrimento dos
serviços sociais autônomos [Sistema S]”, afirmou.
Essa não é a primeira investida de Dodge sobre as entidades neste
ano. Em fevereiro, em parecer e despacho, ela colocou o acompanhamento
dos recursos como uma prioridade.
A cruzada da PGR começou com uma manifestação chamada notícia de
fato, apresentada pelo então senador Ataídes Oliveira (PSDB-TO). Ele
presidiu a Comissão de Transparência do Senado.
Oliveira foi até a PGR para pedir investigações sobre as prestações
de contas das entidades após a auditoria do TCU. A fiscalização foi
realizada sobre recursos de 2015 e 2016.
Em parecer de 4 de fevereiro, Dodge afirmou que “é a primeira vez que
o TCU faz um levantamento global e sistemático” das entidades.
Segundo ela, o levantamento “demonstrou o absoluto desconhecimento e
acompanhamento por parte dos órgãos de controle do Estado, ao longo dos
anos, sobre a forma de arrecadação e aplicação desses vultosos valores”.
A auditoria apontou que, em 2015, o orçamento total do Sistema S foi de R$ 34,9 bilhões e, em 2016, de R$ 32,2 bilhões.
Desse total, no primeiro ano analisado, 62,06% (R$ 22 bilhões)
tiveram origem em tributos. No segundo ano, foram 65,73% (R$ 21,2
bilhões).
Só em imóveis são R$ 23 bilhões. “Parte considerável desse patrimônio
está sendo usada para atividades não relacionadas às atribuições das
entidades”, escreveu Dodge.
Ela destacou ainda dúvidas apontadas na auditoria do TCU sobre
dispensa de licitação e divergências entre valores de despesas e valores
de contratos.
Embora as entidades sejam regidas pelo direito privado, a
procuradora-geral defendeu maior controle sobre elas por os recursos
públicos serem federais e de interesse da União.
Na ocasião, Dodge afirmou que não há “informações suficientes para
fundamentar a deflagração de providências apuratórias na esfera
criminal” na PGR.
Porém, segundo ela, “é certo que as situações retratadas, pela
magnitude dos valores envolvidos na arrecadação desse tributo, pela
natureza pública do recurso e pela finalidade essencialmente pública na
sua aplicação, demandam uma atuação coordenada entre o MPF e o TCU”.
A procuradora-geral acionou câmaras especializadas da PGR, entre elas a de combate à corrupção, para tomar providências.
No dia 7 de fevereiro, Dodge então enviou o despacho ao ministro do
TCU Augusto Sherman Cavalcanti, relator da auditoria na corte.
Nele, afirmou que “a natureza privada das entidades beneficiárias
destes recursos não obsta a incidência das regras constitucionais e
legais de controle orçamentário e financeiro, sob pena de a sociedade
não ter o devido esclarecimento e o acompanhamento da gestão de
recursos”.
Dodge informou ao ministro que as câmaras da PGR deverão adotar “as
providências cabíveis em suas respectivas esferas de atribuição”.
O mandato de dois anos da procuradora-geral termina em setembro. Ela pode ser reconduzida ao cargo.
O presidente Jair Bolsonaro ainda não anunciou o nome do próximo
procurador-geral. A indicação depende de aprovação do Senado após
sabatina.
CONFEDERAÇÕES AFIRMAM QUE SÃO TRANSPARENTES
Procuradas pela reportagem, as confederações do Comércio, da
Indústria, dos Transportes e das Cooperativas afirmaram que mantêm
seções voltadas à transparência em seus sites.
A CNT é a única a defender que a competência para julgamento de questões referentes ao sistema S seja da Justiça Federal.
Em nota, a entidade disse que “também não se opõe a nenhuma
investigação que, porventura, queira fazer o MPF. Pelo contrário, adota
postura colaborativa, embora repudie a insinuação de que crimes sejam
lugar comum na entidade.”
A CNC, por outro lado, entende que o STF “pacificou o entendimento de
que os recursos destinados às entidades de serviços sociais autônomos
vinculados ao sistema sindical, caso do Sesc/Senac, quando ingressam em
seus cofres, assumem natureza de patrimônio privado, não se confundindo
com a administração pública.”
Para a entidade, a corte “também já fixou o entendimento de que essas
entidades possuem patrimônio e receitas próprias, que (...) não
integram o patrimônio público” e, por isso, “o único órgão com
competência constitucional para exercer o controle finalístico de suas
atividades seria o Tribunal de Contas da União”.
Segundo a CNC, o decreto de Bolsonaro, que regulamentou a Lei de
Acesso à Informação, “incluiu, de forma equivocada, as entidades do
chamado Sistema S em seu escopo, pois a lei (...) se aplica a órgãos
públicos e entidades controladas pelo poder público, o que não guarda
qualquer relação com o Sesc e o Senac.”
“Por conta disso, a questão foi submetida à apreciação do Poder Judiciário em ação própria”, disse a confederação em nota.
“As informações e os dados tanto do Sesc quanto do Senac são objeto
de fiscalização regular e disponibilizados para apreciação dos órgãos
competentes (...), além de estarem sujeitos a rigorosos controles
internos dos Conselhos Fiscais e auditorias.”
Na mesma linha, a CNI defende que a “jurisprudência pacífica (...)
estabelece que os serviços sociais autônomos estão sujeitos à Justiça
comum e não à Justiça Federal. Caso o STF decida rever o seu
posicionamento, isto será indiferente”.
A entidade também diz que “não está sujeita ao Decreto 9.781/2019 nem
à Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011). Quanto ao Sesi e ao
Senai, os seus sites da transparência atendem às normas que lhe são
pertinentes”.
Para a confederação, os sites das duas entidades atendem ao espírito e ao objetivo do decreto e da LAI.
Dois advogados da entidade se reuniram em 25 de julho com o ministro
Raimundo Carreiro, do TCU, para falar sobre o processo que tramita no
tribunal sobre os recursos do sistema S. A CNI diz que no encontro foram
tratados “assuntos jurídicos de interesse” do Sesi e do Senai
referentes ao processo.
Para o TCU, “faz parte da rotina dos ministros do tribunal receber as
partes interessadas nos processos para ouvir suas considerações, como
ocorrido na reunião”. O processo está nas mãos do relator, o ministro
Bruno Dantas, que tem o poder de colocá-lo na pauta do tribunal.
O Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop) afirma
que seus recursos se dividem em 80% para atividade finalística (como
cursos de formação e atividades de monitoramento de cooperativas) e 20%
para administração, controladoria e auditoria.
“Somos seguros em dizer que a atuação do Sescoop (...) se faz com transparência”.
A CNA não respondeu aos questionamentos da reportagem.